Por Sidnei Schneider –
Santiago Dias, um plantador de manhãs.
Há alguns anos, buscando dirimir uma dúvida quanto a um verso de outro poeta negro, encontrei no portal Literafro, da Universidade Federal de Minas Gerais, poemas e crônicas de Santiago Dias, um poeta que eu não conhecia. Interessou-me de pronto o texto que hoje publicamos aqui. Pensei, já naquela época, em republicá-lo, mas não sabia nada do poeta, nem como solicitar sua anuência. O tempo passou, até que o jornalista Antônio Rosa, que tem assento na redação deste jornal, o entrevistou, junto ao seu parceiro de show, o músico Lando Suárez, para a Rádio Independência Brasil. Estava criada a ponte.
Santiago Dias (foto acima) é mineiro natural de Nova Belém, município de Mantena, e vive em São Paulo. Publicou os livros de poesia Rosas e vidas (1982), Caminho (1984), Estradar (1987), este adquirido pela rede de bibliotecas do município de São Paulo, e o de crônica Canto a uma manhã sem dor (1994). Daqui do extremo sul do país, sabemos da existência de outros livros, como o de poesia O menestrel desvairado e os de crônica O plantador de manhãs e Destino cigano, sem poder precisar sua publicação. Escreveu para teatro, em parceria com Gaspar Bissolotti Neto, a peça Anchieta na terra dos papagaios, e participou como ator e um dos autores da peça Zé Brasil, enquanto estudava dramaturgia com Carlos Alberto Sofredini. Integrou o grupo Cobras de Cipó, que interpretava poesias em teatros, bares e casas de cultura. A convite do dramaturgo Plínio Marcos, participou recitando poemas no programa Fanzine, da TV Cultura de São Paulo. Voltou a estudar dramaturgia, desta vez com Chico de Assis. Apresentou-se ao lado do cantor e compositor Marcos de Noronha, com quem escreveu os roteiros do curta Valei-me Santo! e do longa-metragem Tróia Negra, a saga dos Palmares. Atualmente, realiza show na capital paulista, de poesia e canções, junto ao músico Lando Suárez. Os dois apresentam o programa Gente Brasileira, da Rádio Independência Brasil.
Na crônica em destaque, Filho da dor e pai do prazer (A origem do samba), Santiago reconta detalhes da confecção e do uso dos instrumentos musicais do samba a partir do relato de um longevo ancestral. Ante o fato de não verem respeitada a sua condição de seres humanos, nota-se bem como os escravos conseguiram resistir e manter viva a sua identidade através da arte e da luta. Sendo esta uma das razões, não só a expressividade numérica na população, da cultura negra brasileira, original e diferenciada da cultura ancestral africana, ser tão forte e presente em nosso país. Mais precisamente, de ter dado o tom para o conjunto da cultura nacional, em sua rica e infinita variedade de contribuições. Antes da internet, levei anos para descobrir o que eram, afinal, os tambores falantes da música africana (talking drums, conforme a língua do país, nas capas de disco), e aqui Santiago fornece detalhes acerca da história da cuíca genuinamente brasileira, aparentada daqueles. Esta crônica, gentilmente cedida por Santiago, pertence ao livro Destino cigano e está publicada, desde 2005, no site letras.ufmg/literafro.
Um poema, do livro O menestrel desvairado, diz: “Fazem-nos acreditar/ Que somos ineficazes”. Ao contestar o que se quis perpetrar contra a população negra para melhor submetê-la, o poema acaba por refutar também uma imputação feita ao conjunto do povo brasileiro, considerado incapaz de gerir seu destino por aqueles que se movimentam para entregar nossas riquezas, nossa economia e o futuro do país aos interesses de cartéis e bancos, sobretudo os internacionais, truncando o nosso desenvolvimento e gerando miséria. Nessa perspectiva, a crônica Em busca de novos horizontes, do livro O plantador de manhãs, propõe: “Temos que parar por alguns instantes e dar um passeio dentro do nosso eu… talvez aí vamos perceber que somos a soma de todas as cores. Somos índios, amarelos, negros e brancos. Como disse um amigo: – Isso está claro nos traços. Se não é no cabelo é na cor. Se não é na cor, é nos lábios ou nariz. O nosso país é um jardim. (…) O Brasil é um jardim de várias etnias”.
Crônica publicada no site do Instituto do Coração, também do livro O plantador de manhãs, Coisas do coração institui o seu sabor logo no início: “Sinto o coração bater com mais força. Parece imitar o surdo da bateria de uma escola de samba. Ouço e sinto o batido nitidamente. Só depois de muito tempo descobri que era pressão alta.” Após revelar ter sido muito bem tratado por enfermeiros e médicos, o poeta-cronista define sua função no mundo: “Quero escrever poesias que possam abrir portas, construir pontes, transpor muros, quebrar vidraças, invadir janelas, encurtar caminhos e me aproximar de outros corações”. E, nessa linha, aprofunda seu posicionamento: “O coração só pode continuar se for para a função do amor, do contrário, prefiro que ele pare agora e nunca mais direi nada a seu favor”.
Ao concluir, reafirma sua boa disposição: “Sinto que a vida continua e tenho um tempo incontável para continuar urdindo, tecendo e fazendo a rede colorida dos meus sonhos”. (SIDNEI SCHNEIDER)
Filho da dor e pai do prazer (A Origem do Samba)
SANTIAGO DIAS
Uma vez, quando ainda era menino, um negro velho contou-me que no tempo da escravidão, os homens dormiam acorrentados nas barras de ferro que havia nas paredes das senzalas. Depois de trabalhar exaustivamente e maltratados, tinham que se ajeitar para descansar de qualquer maneira naquele lugar sujo e fétido. Viviam sem higiene alguma e ainda eram proibidos de lamentar, chorar ou gemer. Apanhavam por qualquer coisa. Eles usavam como banco, assento, uns toros de madeiras roliças e rústicas. Para mostrar que ainda estavam vivos, furavam os toros – pedaços dos troncos de madeira – e colocavam couro bem esticado. Batiam emitindo sons, tocavam com as mãos ou baquetas. Sufocavam o choro e o lamento no batido do grande tambor, atabaque ou bumbo. Ainda não sei se naquele tempo eram esses mesmos nomes. Hoje conhecemos como Surdo, Atabaque, Bombo, Bumbo, Zabumba, que em latim significa Bombu. Depois de algum tempo, esse instrumento passou a ser construído através dos barris pequenos que os senhores de engenho traziam com bebida da Europa e eram descartados nos quintais. A pancada era no compasso do coração, para mostrar que ainda restava vida naquele corpo e que a alma ainda resistia. Assim foi o começo. O samba nasceu de parto natural, “Apesar de ser filho da dor, agora é pai do prazer”.
O Repenique foi criado também em tamanho médio, para ser transportado e ter outra finalidade. Quando os negros fugiam em grupo, levavam esse instrumento. Um dos refugiados era destacado para subir numa árvore para avisar a distância e quantos inimigos vinham na perseguição. Através do toque, os parceiros sabiam se podiam ou não realizar a emboscada. Para os capitães do mato, aquele som era apenas canto de pássaros, enquanto para os outros, era um toque de guerra. Esse instrumento é mais usado em escolas de samba. Entre uma batida e outra, ele vai repicando no meio, cobrindo o vazio.
O Tamborim surgiu dos pingos de chuva na senzala. No meio da noite batia a saudade dos entes queridos, da terra distante e de tudo. Aqueles pingos de chuva caindo insistentemente aumentavam a saudade, a angústia e a dor. Aliás, esses pingos caindo como se surgissem do infinito, traziam lembranças até para quem não tinha do que se lembrar. No dia seguinte, o homem fez o tamborim do couro do gato, ou de outro animal, não sei ao certo. O tamborim é um pequeno tambor. Sei que esse instrumento é afinado no tom do cavaquinho. Parece-me o instrumento mais alegre do samba, apesar de se originar na tristeza e na melancolia. Como diz uma música:
– “Dei um aperto de saudade no meu tamborim, molhei o pano da cuíca com as minhas lágrimas…”
A Cuíca é um instrumento construído de um tamborim de uma só pele, em cujo centro se prende uma varinha, que, atritada com a palma da mão, faz vibrar o instrumento, produzindo uma espécie de mugido prolongado e triste. Foi inspirado num pequeno mamífero malhado de branco e preto, também conhecido como goiacuica. Sem alimento, os negros escravizados tinham que se virar para saciar a fome. A saída era caçar em grupo. Quando encontravam um animal, se juntavam, faziam um círculo e pegavam o mamífero à mão. Através do desespero do bichinho que emitia um som diferente, esse grunhido foi transmitido para o instrumento, que recebeu o nome de Cuíca e virou samba. Um samba sem cuíca, nem parece samba. Esse instrumento desafia a própria lei da física. Onde ele é tocado, sempre há uma vasilha cheia de água para molhar o pano, que ajuda a tirar o som. Atualmente é usado para todo tipo de música e dá uma ilustração toda especial. Com tristeza e alegria, ele enfeita e enche a música de encantos.
– O Chocalho – os negros em fuga tinham que pensar em tudo. Nada podia dar errado. Um detalhe qualquer, poderia significar o fim da vida, ou a tortura por longos anos. Tudo tinha que ser pensado e repensado. Na fuga, os negros usavam todos os artifícios para desviar a atenção dos perseguidores. Quando se encontravam numa moita – mato rasteiro ou lugar sem saída – quase nas unhas dos inimigos, começavam a sacudir os chocalhos. Os adversários fugiam desesperados, pensavam que ali era um ninho de cascavéis. Os negros ganhavam tempo para continuar na peregrinação em busca da liberdade. O chocalho é também conhecido como Ganzá, Xequeré, Xiquexique e outros nomes.
O Pandeiro é constituído por um aro de madeira com uma pele esticada. Geralmente circundado de soalhas – guizos – e que se tange com a mão ou cotovelo. É de origem cigana. Antes era conhecido como pandeirola e era sem couro. O sambista o adaptou para esse ritmo e até parece ser de origem africana, já que se tornou tão íntimo dos batuqueiros. Alguns pandeiristas que conheço, pegam esse instrumento e fazem dele o que bem querem. Nas escolas de samba, eles fazem malabarismo com maestria e fica lindo.
O Agogô era o cincerro no pescoço dos animais. As vacas se embrenhavam na floresta e eram encontradas através do som desses penduricalhos. Artimanhas também usadas pelos negros para driblar os inimigos. Fugiam com os cincerros nas mãos. Os perseguidores pensavam que eram animais e tomavam outro rumo.
O Reco-reco é constituído de um toro de madeira no qual se abre regos transversais e que se faz soar, passando por ele uma varinha, ruído especial, produzido por esse instrumento. Várias pessoas tocando alternadamente produzem um som de sapos na lagoa. Os negros executavam essa sinfonia no momento em que iam fazer seus rituais africanos, suas orações em Iorubá. Os brancos não podiam ouvir, ou, se ouvissem não podiam entender. Eles, os negros, não podiam realizar nada que lembrasse suas origens ou cultura. Foi aí que nasceu também o Berimbau e a Capoeira como dança, luta e defesa. O Reco-reco e o Berimbau tocados juntos, é uma festa.
A Capoeira é dança, é arte, é cultura, é defesa e busca da liberdade. Capoeira também significa mato pequeno. Os Capoeiristas lutam de mãos no chão, ficam baixos, por isso, essa diversão ou luta, recebeu esse nome. Portanto, o Reco-reco nasceu junto com o Berimbau e a Capoeira. Brigaram bravamente contra a escravidão brasileira.
O Berimbau tem vários toques. Toque de dança, toque de luta e toque de guerra. Foi assim que essa gente se impôs e chegou até aqui. Ainda há pouco, a Capoeira não podia ser exibida em qualquer lugar. Havia uma tremenda perseguição da sociedade. Onde havia uma roda de pessoas jogando Capoeira nos caminhos, terreiros, praças ou ruas, os policiais chegavam espancando e até os prendiam como vadios. Ainda hoje isso não mudou muito, mas aos poucos ela está conquistando seu espaço merecido.
Nos rituais de Candomblé ou Umbanda, os negros velhos se juntavam para cantar e contar fatos novos. O Preto velho sentava num banquinho e cantava acompanhado por um Bumbo ou Atabaque. O Preto cantava, as mulheres e as crianças respondiam. As mulheres também tocavam chocalhos, batiam as cascas de coco contra as outras, dançavam e tiravam uma música maravilhosa. Aqueles encontros pareciam festas. Assim nasceu o Jongo, o Samba, o Batuque e mais uma infinidade de ritmos afro-brasileiros.
Os cânticos eram entoados mais ou menos assim:
-“Na Bahia tem um coco / Nesse coco tem dendê / Oi, me diga como é que se come esse coco / Esse coco é bom de comer…
– “Quem tem Baiano pisa / Eu quero ver pisar / Quem tem Baiano pisa / Eu quero ver pisar / Oi, pisa miudinho, aqui nesse Congá…”
O samba foi se afinando e se firmando até chegar ao Dunga, Adoniran Barbosa, Noel Rosa, Cartola, Ataulfo Alves, Zeca da Casa Verde, João Nogueira, Martinho da Vila, Geraldo Filme, Paulinho da Viola e muitos outros criadores da MPB.
“O povo negro fala com Deus através do ritmo, do canto e da dança.“
O negro velho que me contou essa história, se chama Sebastião Lourenço Dias, foi escravo na Bahia e morreu com 129 anos de idade. Foi roubado de Porto Seguro e levado para a zona da mata, Minas Gerais. É meu Bisavô. Morreu trabalhando no campo para sobreviver. Tomava três cachaças por dia. Uma de manhã, outra no almoço e à noite antes de dormir. Era feliz, apesar da dor e de toda humilhação que passou pela vida afora. Nunca esboçou nenhuma expressão de revolta ou desejo de vingança. Quando se referia a esse fato, profetizava que o tempo e o destino iriam cobrar caro da geração futura. Teve duas mulheres em épocas diferentes e com elas mais de quarenta filhos. Ele partiu sem rancores, sem tristeza e nos deixou uma lição de vida. Deixou um caminho feito com foice e machado. É nesse caminho que sigo semeando a alegria e a semente da esperança para um mundo melhor.
Fonte: Hora do Povo
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