Por Alessandro Ventura da Silva

A cultura política nacional brasileira consagrou o federalismo como artefato político edificante entre nós. A promessa, já faz anos, é de que seria mais fácil atingir os objetivos comuns (bem-estar, prosperidade, segurança) se irmanados em torno de algo que nos une a todos. A bem da verdade, se omitirmos a parte essencial, a dos objetivos a serem alcançados, podemos dizer que o federalismo tem funcionado bem, com pecadilhos qui e acolá, mas tem funcionado. Não há nada de extraordinário nisso, segundo um defensor do sistema, Immanuel Kant. De acordo com o filósofo, desde que exista um sistema de freios e contrapesos, “o problema de estabelecer um estado pode ser resolvido até mesmo por uma nação de demônios”. Para nossa atualidade, é possível que a pandemia do corona vírus tenha tornado visíveis alguns dos nossos demônios.

Na versão original da Revolta, o ano era 1904; a cidade, Rio de Janeiro; e a maior parte da população envolvida nos conflitos era pobre e bastante sensível às questões de natureza religiosa e moral. Esse contingente rejeitava a vacina cuja tecnologia era baseada na utilização de pústulas de vacas já enfermas. A população não queria ser inoculada com esse líquido de jeito nenhum. Com a obrigatoriedade da vacina, ainda existia a sensação de invasão dos domicílios por parte dos agentes do governo. Na versão atual da Revolta, o cenário é o dos membros mais proeminentes da elite política. Embora a crise já viesse se desenrolando, ela ganhou capítulo inédito com o anúncio do calendário de vacinação pelo governador de São Paulo, João Dória.

Pode-se sugerir que o demônio do federalismo Kantiano tenha soprado tanto o negacionismo de Bolsonaro quanto a postura de corpo mole do governo federal no combate à pandemia.

Por mais que seja internacionalmente reconhecido pela experiência e estrutura para imunizar a população, o governo brasileiro conformou-se em anunciar a vacinação a partir de março, bem depois do mês de dezembro dos países como Argentina, México ou Turquia. A postura do que se assemelha uma sabotagem não acaba aí. No consórcio COVAX (da OMS), os participantes poderiam encomendar doses capazes de imunizar até 50% por cento de sua população. Diante esta possibilidade, precisaria ser explicadas as razões pelas quais o governo brasileiro arrematou a cota mínima, consignada em 10% por cento. Por último, devido à emergência pandêmica, África do Sul e Índia lideraram junto à OMC a licenciação automática das patentes relacionadas à Covid. Isso teria franqueado a Fiocruz ou ao Butantan acesso a todas tecnologias de imunização.

O Brasil foi o único país emergente a votar contra.

Se a revolta da Vacina ocorreu devido a truculência das autoridades em vacinar a população, a versão farsesca de 2020 se dá pelas mesmas energias, só que invertidas: desta vez é o governo federal que se obstina em não vacinar a população. Na versão atual, a inércia das autoridades de saúde no âmbito federal acabou por galvanizar figuras com disposição de faturar politicamente sobre os escombros da nossa crise sanitária. Ao fazer proveito da sonolência do executivo através da oferta de vacina e da divulgação de um calendário próprio, Dória não apenas expôs a sabotagem federal na condução da pandemia, como apostou em usurpar as atribuições de um cargo mesmo que sob o custo de fricções com seus homólogos, os representantes das demais unidades federativas. Enquanto a Revolta da Vacina, a Original, aquela de 1904, se deu nas ruas, numa batalha campal em defesa de valores importantes às camadas populares, a versão atual se deu pelo estado de inoperância do Ministério da Saúde que repentinamente passou a exigir centralização das vacinas que possam vir a circular pelo território, em franca retaliação às pretensões regionalizantes de São Paulo. Esta versão contou igualmente com governadores que, por não terem alternativas a oferecer as suas populações locais, viram o brilho de João Dória com desconfiança. Neste quadro, chama a atenção o destempero verbal de alguns contendentes: insano, paulistinha e autoritário foram alguns dos adjetivos usados nos insultos.

Existe uma diferença de comprometimento físico nas versões das Revoltas da Vacinas. Na versão do início do século XX, os revoltosos arriscavam suas vidas, conscienciosamente em prol de uma causa que acreditavam justa. Já na edição revoltosa das elites políticas, o negacionismo e a politização promoveram a devastação da confiança da população na capacidade brasileira em vacinar sua população. Na guerra da Vacina com implicações políticas, nosso verdadeiro demônio federativo pode ser contabilizado no verdadeiro custo humano do desarranjo da nossa República Federativa: 180 mil mortes. Boa parte delas, absolutamente evitáveis.


ALESSANDRO VENTURA DA SILVA é Doutor em História, pela Universidade de Paris III; professor, tradutor e conselheiro.