Por Siro Darlan –

Série Presídios XXXIV.

“O sistema de justiça criminal, enquanto mero distribuidor de sofrimento, não é tolerável. Nem mesmo infligir dor ao autor de um massacre é útil para a melhora da sociedade. Na sociedade moderna, a reação ao delito só é politicamente legítima se for útil”.

Porque abolir as prisões. Chega de ódio e de dor. Lívio Ferrari e Giuseppe Mosconi

Certa vez fui a um presidio em Gericinó, onde estão enjaulados 49 mil presos provisórios (47%) e condenados. Os que não foram condenados, pelo texto constitucional, gozam da presunção de inocência, pela visão dos juízes e juízas cumprem antecipação de pena. Encontrei várias personagens pensantes, verdadeiros filósofos da solidão que me deram um nó. Minha pretensão era promover uma reflexão sobre a culpa e a responsabilidade de cada um através de uma atividade reflexiva e restaurativa. Minha primeira pergunta foi: Se você encontrasse com sua “vítima” hoje, o que você diria pra ela? Que justificativa daria para seu ato delinquencial?

Vários responderam de forma as mais diversas, mas um me chamou a atenção em particular ao me devolver a pergunta indagando: De que vítima o Senhor está falando? Eu, que não tenho a atenção do Estado que me esculacha, me tira o emprego, a oportunidade de estudar, de estar sustentando minha família, meus filhos, ou aquele que cruzou no meu caminho para comprar a substância que eu vendia e que ele veio comprar voluntariamente? Esse filósofo das comunidades, onde habitam pessoas de um riqueza espiritual, uma grandeza de solidariedade, que se reúne para bater uma laje, para cuidar uns dos filhos dos outros, por não haver creche é quem nos fala no texto de hoje.

Vista do Complexo Penitenciário de Gericinó, em Bangu. (Foto: Divulgação)

“A sociedade está cada vez mais insatisfeita com a lei que está aí”, disse o apresentador do noticiário na tv, contextualizando a informação, tinha acontecido um feminicídio em algum lugar do Rio de Janeiro, para um crime de tamanha covardia o apresentador inflama seu discurso com a ideia da prisão perpétua. O problema dessa ideia está nela em si como solução, a prisão não soluciona o problema da violência, a prisão é o tapete para onde o Estado varre seus filhos bastardos. A violência tal como está, principalmente no Rio de Janeiro é consequência de todo abandono secular do Estado. A falta de políticas públicas de educação, cria fileiras de gerações que encontram no crime a possibilidade de ter o que sua miserável genealogia não pode lhe oferecer. Para estes, “crias” do mundo, educados pela violência seu modus operante de viver.

A solução social para a violência é a prisão, reunir sob o mesmo teto todos os tipos de criminosos para que se conheçam e convivam entre si, amalgamando todas suas expertises é a fabulosa ideia do Estado para o violento, solução essa completamente ineficaz, pelo menos é o que a história da civilização mostra.

Para todos os efeitos, a utopia educacional é cada vez mais uma miragem no deserto da realidade, óbvio que a educação não resolve 100% violência como um todo, pois a violência é inerente a natureza humana, mas o impacto de transformação do indivíduo e da sociedade norteada por ela, nenhuma estratégia política conseguiu equiparar. Ideias como a capacitação profissional, controle de natalidade, igualdade de gênero e raça, são de competência educacional, para fora deste caminho não há como dominar causas, apenas beber do veneno amargo do efeito, e o efeito do abandono educacional é a causa da extrema violência que vivemos no Rio de Janeiro. 

Como tudo o que o Estado toca vira dejeto social a educação é transformada em lavagem para porcos, e coitado do que, apesar do pior salário nacional, apesar das salas-fornos de aulas, apesar da superlotação de alunos, apesar do desrespeito com que seu patrão (O ESTADO) o trata, tenta fazer do lixo educacional que lhe é oferecido em luxo, para estes a luta, além de solitária é desestimulante. Não é jogo para quem controla o Estado que a massa pobre e esfomeada seja educada, não é jogo para quem troca promessas por votos não ter o que prometer além do óbvio, prometem saúde, segurança e educação como um Eldorado, mas todas essas coisas são deveres do estado para seus filhos, para quem troca anos de reclusão por capital não é jogo soltar quando a meta é prender, não é jogo desfazer o discurso de guerra ao crime, quando é o do crime que eles se alimentam. Gerações inteiras de nepotistas alimentando de promessas uma massa de ignorantes, mantidos na ignorância, para fazer do rebanho, um rebanho mais dócil, esse caro leitor, é o jogo.

Alimentar o discurso de combate à violência com o discurso de prisão desloca o eixo do debate, desfaz toda causa ao tentar solucionar o efeito. O feminicídio é o efeito da falta de educação, a falta de educação que fez da mulher pertencente ao homem. Essa educação machista e patriarcal é o resultado de gerações que cultuaram a mulher como objeto de posse, e como objeto de posse, ela é passível de todas as vontades do possuidor, inclusive de quebra-la, maltrata-la e matá-la. Não faz muito tempo que essa visão vem sendo combatida, repelida e reeducada, mas não vou entrar aqui na luta histórica da mulher pelo seu lugar como igual, mas estou aqui para dizer que apenas a educação poderia inverter a lógica irracional das coisas tal como são, para um caminho justo do que deveria ser. Quando somos educados o objeto da educação e do aprendizado cria em nós respeito, o respeito só é conseguido pela disciplina da educação, temos então um método de revolução mais eficaz do que qualquer outro: a educação.

Mas o cenário de violência não permite essa observação ao sensacionalista, que vê no circo que apresenta a oportunidade de discursar suas baboseiras de forma bonita, todos sabemos que não devemos esperar nada de sério de um palhaço no circo, mas assim como há quem acredite nas ilusões de um mágico, há os que levam a sério as piruetas falaciais do palhaço na tv. No discurso do óbvio não há soluções criativas, a escola é vista como um argumento vazio, e os educadores como desfortunados, para a educação prisional então a ojeriza é autoexplicativa, eles não conhecem, não sabem que existe e não entende o porquê de elas existirem. Não há razão, para eles, em educar quem foi preso, o discurso do apresentador e de seus telespectadores ganham todas as soluções com a prisão ou a erradicação do criminoso, simples assim, pula-se então para a próxima matéria. Nunca podemos nos esquecer que a televisão é uma empresa, e o produto que seus jornais vendem é a exploração da violência, e é da exploração da violência como bitolamento da massa que eles vivem.

Superatarefar os mais pobres com problemas urgentes é o que o Estado faz, negando justiça, educação, saúde e segurança, o Estado cria um incapacitado social, que desempregado e com inúmeros filhos para sustentar em uma comunidade carente, consome este tipo de jornal como ópio para suas mazelas, criadas pela ineficácia do próprio Estado. E este incapacitado fica na frente da tv torcendo para que na próxima eleição apareça um messias, um salvador da pátria prometendo tudo aquilo que é dever e obrigação do Estado prometidos desde 1988 na sua Constituição, mas o coitado, ignorante e sem educação, nunca saberá disso.

Ardiloso o Estado não?”

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SIRO DARLAN – Advogado e Jornalista; Editor e Diretor do Jornal Tribuna da imprensa Livre; Ex-juiz de Segundo Grau do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Especialista em Direito Penal Contemporâneo e Sistema Penitenciário pela ENFAM – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados; Mestre em Saúde Pública, Justiça e Direitos Humanos na ENSP; Pós-graduado em Direito da Comunicação Social na Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal; Coordenador Rio da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro Efetivo da Associação Brasileira de Imprensa; Conselheiro Benemérito do Clube de Regatas do Flamengo; Membro da Comissão da Verdade sobre a Escravidão da OAB-RJ; Membro da Comissão de Criminologia do IAB. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.

Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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