Por João Batista Damasceno

Denomina-se performance o espetáculo em que o artista atua com inteira liberdade e, por conta própria, interpreta papel ou criação de sua autoria. Analisei o ateamento de fogo na estátua do bandeirante Borga Gato com esta concepção.

Não vou analisar o papel exercido pelas instituições de justiça. O papel da policia é investigar e executar ordem de prisão, do MP de acusar e dos juízes de julgar com imparcialidade. O que me interessa é analisar o gesto, o uso do fogo e o personagem escolhido para representar o mal que se pretendia exorcizar. Borba Gato faleceu em 1718 e não foi ele quem foi queimado. O que se queimou foram valores que se acreditavam ser os dele.

No fim da Idade Média multidões em Altos de Fé queimavam alguém escolhido por representar o mal que existia na comunidade. Numa época de pouca longevidade, mulheres idosas e com a experiência e sabedoria decorrentes da efetiva experimentação da vida eram tidas como discípulas do diabo e colocadas em fogueiras. Mas também jovens que desafiavam os valores sociais dominantes. O que é levado à fogueira é o imaginário, ainda que danos reais sejam causados a pessoas ou coisas.

Queimar estátua não faz revolução. Com ou sem estátua o território brasileiro foi apropriado pelos “donos de tudo” que hoje sustentam o sistema financeiro. ‘Empresas de papel’ vendem na bolsa de valores grãos que dizem ter produzido nos latifúndios ou minerais suspostamente extraídos em Mariana, em Brumadinho ou outros sítios, deixando para trás largo passivo ambiental.

Aqueles que escolheram a estátua do Borga Gato para atear fogo escolheram o ícone errado.

Borba Gato, com seus defeitos que eram muitos, inspirou Tiradentes e os Conjurados Mineiros na luta contra a espoliação das riquezas que nos pertence. Era genro de Fernão Dias e cunhado de Rodrigo Paes Leme, que com o apoio de índios construiu uma estrada ladeando o Rio Paraíba do Sul, de Taubaté aos Campos dos Goytacazes, pelo alto da serra do Mar. A estrada ainda existe, mas agora tem vários pedágios.

Por volta de 1680 Borga Bato reagiu à ação da Coroa Portuguesa que mandou um burocrata com uma escritura em mãos expulsar os posseiros das Minas Gerais. Borga Gato simulou que iria mostrar as minas, levou o representante do rei até o alto de um penhasco e o empurrou de lá.

O ex-ministro Delfim Neto disse, num Programa Roda Viva, que deveríamos ler o Relatório Pécora elaborado pelo Senado estadunidense para avaliar o que os banqueiros haviam feito e gerado a crise de 1929. Delfim disse que os banqueiros praticaram toda sorte de crimes e atualmente fazem a mesma coisa, pois “banqueiro solto volta ao local do crime”. Se alguém empurrar um banqueiro destes no penhasco, embora seja conduta criminosa e não deva ser feita, e no futuro for homenageado com uma estátua, seria adequado que gerações posteriores coloquem fogo no monumento?

Com o assassinato do arquiduque Francisco Fernando da Áustria, o nacionalista sérvio Gravilo Princip desencadeou a Primeira Guerra Mundial. Apesar de ter detonado uma guerra que matou quase 10 milhões de pessoas o jovem estudante é herói na Sérvia, pois se opôs – com a própria vida – à pilhagem que as potências ocidentais faziam em seu país.

Depois do assassinato do representante do Rei, que estava em busca do nosso ouro, Borga Gato se refugiou na Zona da Mata mineira, de onde sou originário, e viveu amistosamente por 15 anos numa tribo indígena, compartilhando seus saberes com o povo Aimoré e com eles aprendendo sobre as riquezas naturais brasileiras. Para voltar “à civilização” trocou o mapa das minas por uma anistia. Foi nomeado Tenente-Geral das Minas e juiz ordinário da Capitania das Minas Gerais. Com o mapa das minas em mão o rei outorgou escrituras a fidalgos que com seus papéis expulsaram os mineiros de suas posses e os exterminaram na Guerra dos Emboabas. Não se podem debitar tais atrocidades a Borga Gato.

O ouro saiu do Brasil, passou por Portugal e acabou na Inglaterra, onde estimulou a Revolução Industrial, impulsionou o capitalismo e a expulsão dos camponeses para as cidades a fim de se tornarem mão de obra barata e formar a classe operária.

A estátua de Borga Gato não merece ser queimada, assim como Tiradentes não merece ser chamado de inconfidente. Não nos faltou com a fidelidade. Era um conjurado.

JOÃO BATISTA DAMASCENO é Doutor em Ciência Política (UFF), Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ); Membro do Conselho Consultivo do Jornal Tribuna da Imprensa Livre; Membro e ex-coordenador da Associação Juízes para a Democracia; Conselheiro efetivo da ABI; Colunista do Jornal O Dia. 


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