Por Ricardo Cravo Albin –
“2020 nos tirou do prumo pelo seu cortejo fúnebre: ficou escancarado que sem o outro, não somos e nem seremos”. John Donne, um dos maiores poetas em língua inglesa, com fé absoluta em Deus, mas já a morrer, profetizou há 400 anos: “a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano.” (Dorrit Harazin, artigo no Globo de 03.01.21).
Ao contrário das conhecidas historinhas de alguns cronistas a se intimidarem face à uma folha em branco para preencher esses ecos do ano findo, forço-me a enumerá-los em blocos de síntese. Uma quase temeridade, mas sem escapatória.
1- A semana em que o Brasil se aproximava de 200 mil mortes e – o pior – sem perspectiva robusta de vacinação, a consciência crítica da nação pôde ver no Natal e Réveillon multidões se aglomerando em festas e regabofes com milhares de irresponsáveis de norte a sul a festejar sem máscara, sem distanciamento social, sem álcool em gel. E com respeito zero aos esforços veementes de alertas dos infectologistas. Ainda ontem o Reino Unido decretou lockdowns, prevendo uma terceira e até quarta onda. A indignação por aqui ficou expressa como uma sociedade irresponsável que opta pelo individualismo ao perder sua essência, por tolos caprichos juvenis. Espalhados, é verdade, pelo exemplo do Chefe da Nação-Negação. Que sempre se esmerou em negar todas as normas de prevenção. O acinte desse bando de celerados gerou a criação do perfil no instagran @brasilfedecovid, até hoje a escandalizar as possíveis vitimas, pais e avós dos assassinos potenciais. Uma festança com 500 pessoas é puro desafio a morte. Uma roleta russa. E foram centenas…
2- O que será do País? O começo deste ano será marcado pelo agravamento da pandemia e pela gravíssima falta de coordenação da vacinação, o que joga o Brasil em vergonhosa lanterninha dentre os países mais infeccionados do planeta, vítima de gestões pífias e negacionismo tacanho. A gangorra dúbia da condução do governo causará incerteza fiscal e mais inflação. E a taxa de desemprego, que cresce ao começo do ano, pode chegar aos 17%. Enquanto o Ministério da Economia ignorar que a saúde das finanças só será sanada – não pelos minúsculos indicadores econômicos – mas sim pela única solução, a vacinação imediata, ampla e irrestrita, patinaremos em mortandade e miséria ascendentes. Bolsonaro nunca entendeu que não há escolha entre economia e pandemia. A rima pobre jamais poderá fazer poetar a tragédia deste País. Todos os esforços e recursos para diminuir a pandemia. E ponto final.
3- Outro eco estridente provocado por Bolsonaro foi o indulto de fim de ano a policiais. O que atropela decisões da justiça. Na prática, o Presidente beneficiou militares, por jogada eleitoral corporativa, com o tão duvidoso “excludente de ilicitude” para policiais infratores. Se estivéssemos em uma ditadura, os torturadores seriam os primeiros a ganhar liberdade.
4- Mas entre os ecos mais graves de 2020 está o persistente desmantelamento do órgão mais emblemático contra a corrupção, a força-tarefa de Curitiba, graças a aliança do Procurador Geral Aras, escolhido a dedo por Bolsonaro, com o Centrão da Câmara dos Deputados, força política de apoio do Presidente. Ora, ora, direis, ouvir estrelas… Tudo agora fica translúcido, tudo se conecta: a desconstrução do mito Sérgio Moro e a confirmação de suas denúncias, em especial para Bolsonaro defender os seus (incluindo filhos e Centrão), controlando Polícia Federal e Ministério Público, abastardando o Ministério da Justiça.
5- O que irrita a nação é a desfaçatez com que os mecanismos anticorrupção são esvaziados. Tratados como reles repartições burocráticas, sepultando o fundamental, ou seja, o fato de resgatar aos cofres públicos R$ 4,5 bilhões, roubados da Petrobrás e outros órgãos. Acrescidos de multas de R$ 2 bilhões lavradas com base em delações e ainda R$ 13 bilhões em acordos com empresas que haviam assacado os cofres públicos.
Bastaria isso para glorificar os autores de benefícios financeiros jamais prestados ao país. Apenas, notem bem, apenas por isso, além do inédito aprisionamento dos colarinhos brancos mais intocáveis do Brasil, órgãos como a Lava-Jato, Moro, PF, MP deveriam ser carregados em triunfo pelo país. Razão por quê um grupo de sambistas amigos deste cronista gravou um CD com recado ao Presidente: parte da obra-prima “O mundo é um moinho”, do poeta Cartola:
“Preste atenção/ Tu herdarás só o cinismo/ Quando notares estarás à beira do abismo/ Abismo que cavastes com teus pés…”
Recado enviado, publicado.
RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin, Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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