Por Ricardo Cravo Albin

“Os grandes homens são grandes pela riqueza de amar ideias sendo-lhes fiel na glória ou no exílio.” (Alceu de Amoroso Lima)

Dois personagens da mais alta estirpe saem de cena no espaço mínimo de quase uma semana. Duas personalidades muito queridas de estilos diferentes. Nunca antagônicos, ao contrário, porque ambos convergiram em defesa da liberdade e da democracia, no gosto do refinamento intelectual.

Jabor e eu tínhamos exatamente a mesma idade, já Cândido era doze mais velho.

Como Raquel de Queiroz observou certa vez em crônica na última página de O Cruzeiro, as mortes de entes especiais ligadas ao nosso afeto individual sacodem nossas memórias como sutis tremores de terra, fazendo aflorar escaninhos cerebrais.

Conheci Jabor quando saí do internato Pedro II para uma visita, a convite dele, à UME (União Metropolitana dos Estudantes), de cujo jornal era responsável Cacá Diegues. Aliás, o Cacá me trouxe essas lembranças em bela crônica para Jabor, na qual cita um grande esquecido, o presidente da entidade Alfredo Marques Viana, amigo meu por décadas que me ajudou a realizar o tombamento do Canecão com a assinatura inicial de Barbosa Lima Sobrinho, além do grande almoço que Niomar M. S. Bittencourt ofereceu ao Presidente Sarney para mais uma vez salvar o MAM.

Cineasta tinha 81 anos, Jabor participou do movimento do Cinema Novo na década de 1960, que procurou trazer uma nova estética ao cinema nacional, influenciado pela neorrealismo italiano e a nouvelle vague francesa

Em uma visita à Embrafilme, Jabor (foto acima) me disse que queria que eu visse seu recém editado Pindorama. Dito e feito. Depois de assistir à epopeia barroca de esboço de país ainda no berço o filme Pindorama (como os donos das terras chamavam o futuro Brasil), David proclamou: esse é o filme, Ricardo, que vamos enviar para o Festival de Cannes-1971. Assenti de pronto, ligamos para o diretor da Cinemateca Francesa, o amigo Henri Langlois e Paulo Emílio Salles Gomes, pesquisador sênior da instituição. Recebemos acolhida prévia do diretor do Festival, íntimo de Langlois, que inscreveria Pindorama como representante oficial pelo Brasil. Saímos os três para celebrar no Antonio’s onde Jabor nos contou de suas dificuldades para construir todo o cenário do filme na Ilha de Itaparica com apoio de João Ubaldo: ele erguera cem tabas de barro e de palha, o que levantou um quase motim na Ilha, abortado por Ubaldo. Com enormes dificuldades para pagar e alimentar a equipe numerosa na Bahia, o filme foi salvo por auxílio emergencial da Embrafilme gerido pelo David.

Em resumo, os astros do filme, Itala Nandi e Maurício do Valle, Jabor e eu, enfiamos nas malas os enxovalhados smokings para a noite de gala do Brasil. No júri, presidido pela atriz Michelle Morgan, estava Anselmo Duarte. Convidei ambos para um jantar com nossa delegação. Espera daqui, espera dacolá, Jabor não chegava para meu desespero. A razão: ele havia sido quase sequestrado por Claude Chabral para um convescote explicando Pindorama como paráfrase de como erguer um país e também como refletir sobre a política da época. A consequência: o júri, a diva Darrieux e o difícil Anselmo Duarte não perdoariam o bolo de Jabor ao jantar. E o filme dele passou em brancas nuvens: ganhou J. Losey com O Mensageiro (The go-between). Jabor deserdaria Pindorama e sua indicação como representante oficial do Brasil em 1971, já que ele achava o filme simplesmente equivocado. Com o que jamais concordei:

Pindorama é um barroco tropicalista, quase glauberiano, identificado com sua época.

Professor e ensaísta tinha 93 anos, Mendes ocupou a 35ª cadeira da Academia Brasileira de Letras (ABL)

Quanto ao jovem Cândido Mendes, fomos juntos (Jabor e eu) a muitas das antológicas conferências do ISEB (Instituto Superior de Estudo Brasileiro), onde se respiravam reflexões sobre o Brasil orientadas por Cândido e Roland Corbisier. Cândido era um brilho só em energia e veemência, esmurrando a mesa com a fúria de suas inquietações sobre o Brasil.

A culminância do ISEB foi o convite feito ao icônico casal Sartre e Beauvoir. Cândido resplandecia, impossível não me emocionar agora, em eloquente francês ao apresentar o par de intelectuais a um auditório lotadíssimo.

Ano retrasado prestei-lhe homenagem, como Presidente da Academia Carioca de Letras, para lhe entregar a Comenda “Padre José de Anchieta, o Apóstolo do Brasil”. Em festa organizada pela hoje célebre infectologista Margareth Dalcolmo, sua viúva. Fiz-lhe um tributo relembrando minunciosamente o bisavô Candido Mendes de Almeida, senador da República e ardente defensor da Igreja nas diatribes com o positivismo. Aliás, Elio Gaspari produziu há dias croniqueta relembrando o atentíssimo católico militante que Cândido sempre foi. E ostentou. Pudera, irmão de um Cardeal, neto de Conde, bisneto de Senador em defesa da Igreja e ainda trineto do Marques de Paraná. Ademais, como militante católico, o pensador e educador foi decisivo na reunião do episcopado de 1970, denunciando casos de prisões, torturas e mortes de presos.

Quando Presidente do Centro Dom Vital, conversei muito com Cândido sobre o acervo de Alceu de Amoroso Lima, que do Centro fora transferido a pedido dele para a Universidade Cândido Mendes. Candido prometeu rever.

RICARDO CRAVO ALBIN – Jornalista, Escritor, Radialista, Pesquisador, Musicólogo, Historiador de MPB, Presidente do PEN Clube do Brasil, Presidente do Instituto Cultural Cravo Albin e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do Jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.


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