Por José Henrique Rodrigues Torres –

Estamos aqui porque outras caminharam antes e   porque outras vão caminhar depois” [Anabel Fernández Sagasti, senadora argentina]

No espectro dos Direitos Humanos, direitos conquistados não suportam retrocesso. Não se admite marcha à ré! Vale, sim, a cláusula da proibição do avanço reacionário. Não há tergiversar. Se as mulheres conquistaram o direito de estudar, de votar, de não sofrer violência nem discriminação, de exercer plenamente a sua sexualidade, não é possível retroceder. As leis e políticas públicas implantadas para garantir esses direitos não podem ser aniquiladas nem reduzidas no seu alcance ou abrangência. Os direitos humanos devem ser aplicados e garantidos sob a perspectiva de conquista, reconhecimento e consolidação de direitos, o que implica a inadmissibilidade de retrocessos.

No seu movimento dialético, o sistema de proteção dos direitos humanos, sempre em construção, ainda que projetado sob a perspectiva de uma universalidade utópica, caminha para transformar a sociabilidade, desenvolvendo-se a partir de conquistas históricas, éticas e axiológicas. A vida social, na sua dimensão material, construída a partir dessas conquistas, não é um amontoado de fatos fortuitos. As mulheres, inserindo-se nesse projeto civilizatório, para garantir a sua dignidade e conquistar a igualdade material, enfrentam uma luta histórica contra a cultura androcêntrica, preconceituosa e, inclusive, racista, fruto de uma ideologia patriarcal hegemônica e fundada, sobretudo, na desigualdade, que, no âmbito da sexualidade e das relações de gênero, reproduz dominação e exclusão nas sociedades estruturadas na exploração e nas formas assimétricas de poder nos espaços público e privado. E, nessa luta renhida, se as mulheres conquistaram, no âmbito da legalidade, a licitude do aborto praticado para salvar a vida da gestante e, também, nos casos de gravidez resultante de crimes contra a dignidade sexual, bem como, na arena do STF, o reconhecimento de que nem sequer caracteriza “aborto” a interrupção da gestação nos casos de malformação fetal com inviabilidade de vida extrauterina, não se pode admitir qualquer retrocesso. Essas conquistas são irreversíveis. É preciso avançar. Retroceder, jamais.

A proibição do avanço reacionário é expressão de um direito de resistência, construído nas entranhas do sistema de proteção dos direitos humanos para garantir a irreversibilidade das conquistas sociais e históricas contra a opressão, a dominação e a exploração. Toda forma de proteção de direitos fundamentais, sociais ou não, está protegida, sob o arnês do princípio da proibição de retrocesso, contra qualquer medida do poder público, legislativa ou administrativa, que tenha por escopo a sua supressão ou restrição. Aliás, esse princípio está inserido no bojo da CADH (v. art. 29, b).  E o Ministro Celso de Mello, no STF, afirmou que “o princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado, que, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados” (ARE-639337).

É verdade que a ideologia reacionária, especialmente inspirada por ideais neoliberais, tem procurado violentar essa cláusula de resistência cidadã, reduzindo ou condicionando a sua aplicação, com objetivo único de salvar a sociabilidade capitalista e conter qualquer avanço social no caminho da superação da exploração, que é a sua essência. É por isso que se tem afirmado que, para preservar o sistema econômico e financeiro diante de crises emergenciais, é necessário interpretar as normas constitucionais de acordo com as suas possibilidades fáticas e, assim, tolerar restrições aos direitos fundamentais e benefícios sociais conquistados. Todavia, talvez ruborizados pela sustentação dessa tese, que limita ou nega a conquista histórica de direitos fundamentais, seus protagonistas sustentam, também, que, para que não prevaleça uma “proteção insuficiente” dos direitos humanos, é necessário, para extrapassar a cláusula de proteção contra o retrocesso, que a limitação ou abolição pretendida seja submetida ao teste tríplice da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), o que evidencia, na realidade, o reconhecimento da imprescindibilidade da prevalência dessa cláusula para a garantia dos direitos humanos. Aliás, essa resistência reacionária contra o princípio da proibição do retrocesso lembra a recalcitrância dos escravocratas, advogando uma abolição gradual da escravidão para preservar seus interesses econômicos e, assim, preparar a imigração compensatória do trabalho assalariado e submeter os novos trabalhadores, não mais à violência da chibata, mas à força do direito, legitimado pelos ideais liberais da liberdade contratual, igualdade formal e proteção da propriedade. É assim que o necrocapitalismo, vestindo a máscara neoliberal, conspurca as conquistas sociais, promovendo a flexibilização de direitos e a precarização das prestações sociais. É por isso que o sistema de proteção dos direitos humanos exige a prevalência da proibição do avanço reacionário, garantindo a impossibilidade jurídica de retrocesso.

Assim, o processo histórico de conquista da descriminalização do aborto, que ainda não é plena em nosso sistema legal, deve progredir. Retroceder, jamais. São inadmissíveis, inconstitucionais e violadoras do sistema de proteção dos direitos humanos, todas e quaisquer tentativas de alteração legislativa para ampliar a criminalização do aborto, para diminuir as hipóteses legais de descriminalização ou mesmo para desmantelar as estruturas e políticas públicas criadas e implantadas para garantir a prática segura do aborto legalmente descriminalizado.

Como está consignado no Plano de Ação de Beijing, a criminalização do aborto é absolutamente incompatível com a garantia de assistência plena à saúde e à vida das mulheres e é preciso promover a exclusão de todas e quaisquer medidas punitivas imposta às mulheres que realizam o aborto, pois, o caráter repressivo do sistema penal exclui, estigmatiza e impede que as mulheres tenham o necessário acolhimento. Os Comitês CEDAW e PIDESC, reconhecendo que a criminalização do aborto acarreta um impacto perverso na vida das mulheres, exigem a eliminação de punições impostas ao aborto e a adoção de políticas públicas para eliminar os abortos inseguros. E, em inúmeros documentos produzidos no âmbito do sistema de proteção dos direitos humanos, bem como na jurisprudência das cortes internacionais de direitos humanos, está afirmado, com caráter normativo e vinculante inclusive, que às mulheres devem ser garantidas todas as condições para a prática do aborto de forma segura e humanizada. A criminalização do aborto, portanto, é absolutamente incompatível com o sistema de proteção dos direitos humanos. E a sua descriminalização, uma exigência constitucional e convencional imprescindível para a proteção do direito fundamental à saúde e à vida das mulheres, o que afasta, definitivamente, qualquer possibilidade de retrocesso no processo de descriminalização já implantado em nossa legislação.

Aliás, a criminalização do aborto no Brasil viola, também, os princípios constitucionais da racionalidade, idoneidade e subsidiariedade, subverte a principiologia da intervenção mínima, da ultima ratio e do respeito à dignidade humana e está sendo mantida de forma irracional, inidônea, ineficaz, simbólica e promocional, o que está impedindo que sejam garantidas a autonomia, a autodeterminação, a igualdade, a dignidade, a saúde e a vida das mulheres.  É por isso que a luta pela descriminalização do aborto no Brasil, sem retrocesso admissível nas etapas conquistadas, constitui uma luta pela prevalência da plenitude dos direitos humanos das mulheres.

E não se diga que o Pacto de São José da Costa Rica, por força de seu artigo 4.1, estaria a impedir a descriminalização do aborto. Ledo engano. É que a Corte IDH, que, de acordo com a Convenção de Viena e nos termos do art. 62 da CADH, é o órgão jurisdicional com competência para realizar a derradeira interpretação do Pacto, interpretando esse dispositivo convencional, proclamou, no caso Artavia Murillo y Otros vs. Costa Rica, que “o direito à vida, protegido, em geral, desde a concepção busca proteger os direitos da mulher grávida”, não os direitos do embrião, não os direitos do feto. Aliás, a Corte também decidiu que (1) “o direito à vida desde a concepção não pode ser absoluto, mas, apenas, incremental e admite exceções” e, ainda, que (2) “o direito à vida desde a concepção não pode ser usado para limitar outros direitos de maneira desproporcionada, nem pode gerar efeitos discriminatórios”. Assim, são intoleráveis e inadmissíveis quaisquer alterações do texto constitucional que contrariem essa interpretação vinculante e obrigatória que a Corte conferiu à CADH.

Manter a criminalização do aborto, portanto, inviabilizando a plena assistência à sua saúde e perpetuando os altos índices de mortalidade e sequelas decorrentes da prática do aborto inseguro, significa violar os direitos humanos das mulheres. É por isso que, em 1995, em Beijing, e, depois, em Nova Yorque, em 2006, o Brasil comprometeu-se “a rever a sua legislação repressiva relacionada ao aborto” visando à sua descriminalização.

Aliás, as normas infraconstitucionais que criminalizam o aborto, contrariando os princípios e regras do sistema de proteção dos direitos humanos, já poderiam ser consideradas inválidas. É que o STF, em 2008, submetendo, inclusive, dispositivo constitucional à prevalência das normas de garantia dos direitos humanos, afirmou o “efeito paralisante” dessas normas em relação à legislação infraconstitucional que com ele eventualmente se antagonize (RE 466.343).

Todavia, enquanto o sistema de justiça não reconhece a incompatibilidade da criminalização do aborto com o sistema de proteção dos direitos humanos, é preciso bradar, como Drumond, que “as leis não bastam, os lírios não nascem das leis”. A luta pela mantença e efetivação dos direitos humanos conquistados pelas mulheres há de prosseguir. É preciso, ainda, muita luta, ação social e resiliência para conquistar a ampliação das hipóteses legais de aborto lícito, para não admitir qualquer avanço reacionário no âmbito legislativo ou administrativo, para impedir qualquer tentativa de diminuição das hipóteses de “aborto legal” e para resistir contra qualquer medida de desmantelamento ou enfraquecimento das estruturas de assistência às mulheres para a realização do “aborto legal” seguro.

Apenas não se pode dizer, como Didi, de Samuel Beckett, em “Esperando Godot, “não há nada a fazer, além de esperar”, Há, sim, muito a fazer. É preciso ouvir a exortação de Paulo Freire e esperançar, ou seja, levantar-se, construir, não desistir, ir adiante.

Retroceder, jamais.

José Henrique Rodrigues Torres é juiz de direito do TJSP e membro da AJD – Associação Juízes para a Democracia.

A coluna ‘Tribuna dos Juízes Democratas’, dos juízes e juízas da AJD, é associada às colunas ‘Avesso do Direito’ do jornal Brasil de Fato e ‘Clausula Pétrea’ do site Justificando.

Publicado inicialmente no Justificando. Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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