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“DE NOVO A TEMPESTADE – Sétimo capítulo da história de Bentinho” – por Antonio Veronese
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“DE NOVO A TEMPESTADE – Sétimo capítulo da história de Bentinho” – por Antonio Veronese

Por Antonio Veronese –

Como veremos a seguir, a calmaria nas relações entre Bentinho e os Fragoso, decorrente da regularidade do aporte financeiro do comendador, não duraria muito. Cada vez mais segura da dotação mensal, Lilina voltou, pouco a pouco, a endurecer na relação com o menino. Recomeçaram as velhas exigências absurdas, o descaso com as roupas, as repreensões desproporcionadas à menor travessura, a Intransigência com os horários e a negligência com a saúde. Tudo, paulatinamente, voltava a ser como dantes.

O menino, sentindo-se novamente acuado dentro da casa, fechava-se cada vez em si mesmo, criando seu mundinho particular, restringindo sua vida à escola a cada manhã e ao refúgio solitário das pescarias vespertinas quase que diárias. Voltou a emagrecer e, pouco a pouco, substituiu a alegria do rosto juvenil por uma sisudez incomum à sua idade… Sua mudança de atitude chegou a chamar a atenção das vizinhas que, na sua bisbilhotice cotidiana, perguntavam-se “o que estaria acontecendo”.

Uma manhã, antes de sair para a escola e encontrando o banheiro único da casa ocupado, Bentinho bateu à sua porta dizendo que estava apertado e tinha urgência em fazer xixi. Recebeu severa e injustificada repreensão:

– Espere tua vez, moleque. Agora pensas que és também o dono da casa? Se não podes esperar, faça-o nas calças! Gritou a mulher. O que Bentinho fez, não por propósito, mas assustado com a reação de Lilina.

– Agora urinas nas calças também, infeliz? Pois vais assim mesmo à escola, de calças molhadas! Posto fora da casa e envergonhado, Bentinho não foi à escola, passando toda a manhã em um canto do grande armazém, escondido do mundo entre as sacas de café

A professora Catarina

A nova situação que atravessava Bentinho não tardou a produzir seqüelas, entre elas a vertiginosa queda no desempenho escolar, fato que provocou inesperada visita da diretora do ginásio, professora Catarina de Jesus. Apesar de recebida com extrema frieza por Lilina e de lhe ser negada qualquer explicação para a mudança de comportamento do menino, pôde a arguta professora perceber, apesar da ausência de Bentinho, o clima que se instalara na casa: a rispidez de Lilina; sua recusa em apontar o local reservado ao menino para estudar; a misteriosa ausência de seu prato à mesa do almoço recém encerrado… Ficou-lhe claro que algo de muito grave estava acontecendo.

Sem nada dizer a Lilina, Catarina, no dia seguinte, através de um coleguinha de classe, mandou chamar Bentinho para uma conversa particular, visto que o menino, já há três dias, não comparecia às aulas.

Por uma providência divina, o encontro, na manhã seguinte, deu-se no auge de uma aguda crise dentária que desfigurava a face do menino numa inchação descomunal. Perguntado se já fora ao dentista, Bentinho respondeu que não e que daquela dor ele já padecia há quase uma semana, razão da sua ausência nas aulas. A preocupação de Dona Catarina, que até então fora tão somente uma extensão de suas responsabilidades de diretora, transformou-se nesta hora em uma grande revolta. Sabia ela, pois que em cidades pequenas de tudo se sabe, do fausto que exibiam os Fragoso ultimamente. Nada justificava a falta de socorro ao sofrimento do menino.

Bentinho então, habilmente estimulado pela velha mestra, contou-lhe tudo, a história toda, tintim por tintim. Falou da visita do comendador; da sua decepção em não poder acompanhá-lo ao Rio de Janeiro. Depois referiu-se à vultuosa soma de dinheiro mensalmente remetida para sua educação.

-Dez contos de réis!, enfatizou.

A bondosa Catarina ouviu sem acreditar no que ouvia. Era torpe demais, exclamou entre dentes. O menino, estimulado pela indignação da mestra, alongava-se nos detalhes: descreveu as exigências descabidas, os horários espartanos, os maus tratos, a sujeira do buraco em que dormia, o mau cheiro da roupa que vestia, a proibição de compartilhar da mesa às refeições, a discriminação na partilha da comida enquanto os armários da despensa, trancados a sete chaves, transbordavam de farturas e aromas…

A mestra conteve o choro enquanto ouvia.

– Deus do céu, exclamou, com os olhos marejados. Aproveitam-se do menino para viver como nababos, sem ter a dignidade de atendê-lo em suas mínimas necessidades?

A revolta inicial, que a compelia a tomar medidas de pronto, foi contida a muito custo. Agir pelo impulso, movida pelo que sentia, certamente não seria a melhor estratégia. Era mister que, de forma cautelosa, tateando o terreno em que iria pisar, encontrasse a solução mais adequada.

Segurando afetuosamente as mãos de Bentinho, marcou com ele novo encontro, instruindo-o para que nada comentasse com ninguém. Mais do que isso, pediu-lhe que localizasse o endereço do Comendador no Rio de Janeiro e providenciou, com discrição, para que fosse imediatamente atendido pelo dentista, a quem pagou do próprio bolso as despesas decorrentes.

Naquela noite, Bentinho, pesando cada palavra para não levantar suspeitas, pediu de volta a correspondência de seu falecido pai, que entregara à Lilina.

– Queres os envelopes por que?, rosnou a mulher

– Pois gostaria de guardá-los comigo, disse apenas o menino.

– Guardá-los contigo? Guardá-los contigo por que? Desde quando és o Arquivo Nacional? Diga lá, desde quando? O que tu queres é o endereço do comendador. Não é isso? Não é isso que tu queres, infeliz ?

Bentinho baixou a cabeça sem nada dizer, provocando ainda mais as suspeitas de Lilina. Deus do céu! A mulher teve uma explosão de fúria.

– O que é que tu pretendes? Queres o endereço por que razão?

E, pressentindo que havia algo errado no ar, não só negou-se a atendê-lo como, de forma incisiva, ameaçou-o de que se arrependeria amargamente se incomodasse o comendador, sob qualquer pretexto, no Rio de Janeiro.

No dia seguinte, Bentinho voltou a procurar a professora Catarina. Estava apavorado. Disse-lhe que não queria mais conversar. Além de não ter conseguido o endereço do comendador, ele provocara ainda uma situação mais delicada dentro da casa dos Fragoso. Preferia deixar tudo como estava e não mais tocar no assunto.

As ameaças da víbora surtiram efeito: o menino recuava assustado. No entanto, a professora não se deixaria intimidar.

A velha professora

A professora Catarina era uma pessoa conhecida de todos em Serrinha. Muito religiosa, orgulhava-se de seu nome, dado por homenagem a Santa Catarina de Alexandria, a quem dedicava profunda devoção. Tia Catarina, como era carinhosamente chamada, jamais havia se casado, ainda que num certo momento de sua juventude as línguas ferinas  insinuassem uma “relação” particular com o casadíssimo farmacêutico Tonico Casanova…

O certo, no entanto, é que concentrara toda sua vida no amor pelas crianças e na sua paixão pela educação. Por quarenta anos exercera o magistério com dedicação e competência e, mesmo depois de aposentada, continuava a seu ofício, agora como diretora da escola. Por força dessa coerência de toda uma vida, acrescida da maneira gentil e delicada com que tratava seus semelhantes, tornara-se consensualmente respeitada e querida.

Não lhe foi difícil, graças à discreta intervenção de uma amiga funcionária dos Correios, conseguir o endereço do comendador no Rio de Janeiro, pinçado do verso do envelope que chegou no mês seguinte, trazendo o dinheiro remetido da capital.

Chamou Bentinho, comunicou-lhe a boa nova e o tranquilizou. Escreveria ao português dando conta da situação. E fê-lo, no mesmo dia, em carta muito bem redigida que despachou com a consciência do dever cumprido.

Passadas duas semanas a bomba estourou. Bentinho, arrancado da cama aos safanões, foi chamado a dar explicações a respeito da carta que acabara de chegar do Rio, na qual o Comendador, preocupadíssimo, exigia notícias do menino, mencionando ter sido informado, “por aquela megera da Catarina”, segundo ênfase da encolerizada Lilina, de que o menino passava por necessidades de toda a sorte. Foi um inferno!

Depois de humilhado, ameaçado e insultado, Bentinho concordou, sob pescoções, em escrever de volta ao Comendador desmentindo a todas as denúncias da professora Catarina.

Em carta, ditada palavra por palavra por Lilina, afirmou que tudo não passava de esclerose da velha professora, provavelmente interessada em transferir para si a custódia do menino e, consequentemente, a dotação mensal dos dez contos de réis. Assegurava que havia ganho roupas novas e que estava muito bem tratado, saudável e feliz. Por fim, solicitava ao comendador que não desse ouvidos às línguas alcoviteiras de Serrinha dos Cocos.

Bentinho assinou a carta sob o olhar possesso de Lilina que, imediatamente, com desdenhosa lambidela, selou o envelope, atirando-o às mãos do marido:

– Vai, desgraçado, despacha isso de uma vez antes que o português resolva voltar aqui e que tenhamos de voltar a comer da miséria do teu salário.

Depois, dirigiu-se a passos largos e decididos à praça fronteiriça à casa da professora Catarina de onde, com as mãos na cintura em debochada postura, lançou impropérios impublicáveis… ironias à sua idade, desaforos ao seu caráter, adjetivos escabrosos à sua aparência e zombeteria às sua mendicidade… tudo isso em alto e bom som no silêncio parado da tarde de Serrinha. Foi um escândalo, do qual participou toda a vizinhança em constrangido silêncio.

A pobre professora a tudo ouviu calada, em altiva resignação. Evitou responder aos insultos, visto que sua conduta pessoal e caráter bastavam à sua defesa; mas não permitiria o oblívio da causa, pois que a esse respeito sentia-se verdadeiramente convocada. O xingamento público, a boçalidade das ameaças, nada, nada mesmo seria suficiente para afastá-la de sua determinação em ajudar Bentinho.

Assim sendo, tão logo pode, procurou inteirar-se sobre o que se havia passado na arena dos Fragoso, detalhe por detalhe. O menino, ainda assustado, descreveu a fúria de Lilina, a carta que havia sido obrigado a escrever ao comendador e tudo mais…

Catarina ouviu com atenção, procurando minimizar a gravidade da situação para acalmar Bentinho:

– Não te inquietes, pequeno. Eu irei pessoalmente ao Rio, se preciso for. E levar-te-ei comigo para que dês pessoalmente ciência da tua situação aos teus amigos portugueses.

A frase da professora Catarina embriagou de luz e o olhar do menino. Seria uma solução, uma deliciosa solução, pois ainda que nada resolvesse, daria a ele a oportunidade para conhecer a tão sonhada cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Voltou para a casa policiando-se para não revelar a esperança refugiada em seu coração. Nada comentou com ninguém. Suportou resignado toda a ranzinzice e a ralhação. Os dias custavam a passar, mas Bentinho mantinha vívida a chama reacendida em seu peito pela doce professora Catarina.

(CONTINUA NA PRÓXIMA SEMANA)

ANTONIO VERONESE – Pintor brasileiro autodidata com uma obra considerável, realizou centenas de exposições individuais, tem obras expostas em numerosos museus, coleções públicas e privadas nos Estados Unidos, Suíça, França, Japão, Chile e Brasil. Colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre, representante e correspondente internacional em Paris, França; Radicado na França desde 2004, antes de deixar o Brasil deu aulas de arte para menores infratores nos Institutos João Luiz Alves, Padre Severino e Santos Dumont, no Rio de Janeiro, e no Caje de Brasília. Utilizou a pintura como forma de reabilitação psico-pedagógica dos adolescentes entre 12 e 18 anos com a bandeira” estética é remédio!”. Alguns dos trabalhos produzidos pelos jovens foram expostos em Genebra (Suíça), no Salão Negro do Congresso Nacional, em Brasília, e na Universidade de San Francisco, nos Estados Unidos. Em 1998, representando o Brasil no Encontro de Esposas de Chefes de Estado, cobrou da então primeira-dama, Ruth Cardoso, medidas para tirar das ruas crianças abandonadas, tendo recebido o apoio de Hilary Clinton. Pela denúncia da violência contra menores no Rio de Janeiro, que faz através de sua pintura e de engajamento constante deste 1986, Veronese foi convidado à Comissão de Direitos Humanos da ONU – em Genebra, para proferir palestra, lá causou grande indignação ao apresentar fotografias de 160 crianças, marcadas por cicatrizes massivas decorrentes da violência urbana, doméstica e policial.

www.antonioveronese.com

Antonio Veronese, Italian-Brazilian painter, lives in France since 2004. He is the author of «Save the Children», symbol of th e 50th anniversary of the United Nations, and «Just Kids» symbol of UNICEF. As well of «La Marche», exhibited in the Parliament of Brazil since 1995, and «Famine», exhibited since 1994 at the Food Agriculture Organization for United Nations (FAO) in Rome.

Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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