Por Jorge Folena

Num discurso permeado de inverdades (como de costume), proferido na abertura dos trabalhos da Organização das Nações Unidas, em 22 de setembro de 2020, o ocupante da Presidência da República, ao afirmar que o Brasil é um país cristão e conservador, mais uma vez desrespeitou a Constituição.

O presidente desprezou, enquanto Chefe de Estado, a opção das pessoas serem ou não crentes ou professarem outras religiões, que não a cristã; no mesmo passo, negou-lhes também a liberdade de serem progressistas ou defenderem qualquer outra expressão política.

Na verdade, a partir de sua estreita visão, ele pretendeu fazer por extensão uma imagem do que possa ser o coletivo do país, o que constitui grave equívoco para um chefe de poder. Pois, como lhe disse o ministro Marco Aurélio de Mello, na posse do atual presidente do Supremo Tribunal Federal, “o senhor governa para todos os brasileiros”, e não somente para os seus seguidores ou eventuais eleitores.

Ao longo da história, temos visto muitos conflitos deflagrados e alimentados pela intolerância religiosa. De forma contraditória, pessoas que se dizem seguidoras de deidades que pregam amor, igualdade e solidariedade, tomam-se de ódio contra aqueles que passam a enxergar como infiéis e partem, dispostas a atuar com total violência, em novas versões de cruzadas e guerras santas. Foi para evitar a repetição de tantos eventos destrutivos e o controle direto do Estado por entidades religiosas, que as cartas constitucionais modernas passaram a estabelecer a laicidade do Estado e o respeito ao pluralismo de ideias.

Assim, a partir da Constituição, o Estado laico é aquele que permite a ampla liberdade de consciência e de crença, protegendo inclusive o direito dos que negam a existência de Deus. A laicidade do Estado visa assegurar todas as formas de manifestação religiosa e a proteção aos locais de culto e suas liturgias, independentemente da crença. Por isso, também garante que nenhuma pessoa pode ser privada de seus direitos por motivo de crença religiosa, filosófica ou política, como é garantido pela Constituição brasileira.

Num Estado laico, como é a República Federativa do Brasil, é proibido pela Constituição que seus dirigentes e/ou as entidades públicas estabeleçam cultos religiosos ou promovam igrejas específicas, subvencionem ou dificultem o funcionamento de determinada crença ou mantenham relações de dependência ou aliança com uma delas, de forma a impedir a distinção ou preferências entre brasileiros.

Além disso, é princípio fundamental da República o pluralismo político, que significa que o cidadão tem a liberdade de optar por qualquer escola ideológica, o que lhe confere o direito de ser comunista, liberal, anarquista ou não ser absolutamente nada.

Nesse passo, o presidente que se comprometeu, no ato de posse, a manter, defender e cumprir a Constituição, não poderia jamais, no exercício das suas funções de chefe de Estado, afirmar de forma equivocada que o Brasil é um país cristão e conservador, como se aqui não houvessem outras formas de manifestação religiosa e política.

Com seu ato, desrespeitou os demais brasileiros que não são crentes, cristãos ou conservadores, e, inclusive os que têm o direito de não acreditar na organização do Estado, por convicção filosófica ou política, apesar de estarem obrigados a cumprir as suas leis. Mais uma vez o ocupante da Presidência da República violou a Constituição, e, pelo visto, nada lhe acontecerá.

Para que fosse feita alguma coisa, seria preciso que os integrantes das instituições que compõem o Estado brasileiro recordassem a leitura do documento a que todos juraram obediência, tendo prometido defender a soberania e assegurar a construção de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

Entretanto, entre os muitos integrantes das instituições políticas, militares e burocráticas, a uns nada interessa fazer, pois são molas propulsoras no processo de destruição em curso; enquanto outros, enredados em medos, preconceitos diversos e projetos paralelos de poder, simplesmente não querem recordar seu dever primordial para com o país.

Portanto, se não restabelecermos, imediatamente, um ponto de equilíbrio na sociedade brasileira, de forma a afastar a imobilidade hipnótica engendrada pelo ódio e pela mentira como projeto de dominação iniciado abertamente desde 2013, continuaremos imersos na tragédia de ver nosso país sendo conduzido ao abismo pelo farsante travestido de flautista de Hamelin, que a pretexto de combater os ratos, trouxe-os para dentro do poder.


JORGE FOLENA – Advogado; Doutor em Ciência Política, com Pós-Doutorado, Mestre em Direito; Diretor e Vice-Presidente da Comissão de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros. É colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre e dedica-se à análise das relações político-institucionais entre os Poderes Legislativo e Judiciário no Brasil.