Por Jorge Folena –
Tenho sido um crítico ao realismo jurídico americano, uma doutrina relativa à teoria do direito que, a partir dos anos 20 e 30 do século XX, passou a entender que o Direito se manifesta por meio das decisões dos tribunais, em particular as Supremas Cortes de Justiça.
Para esta corrente de pensamento, o juiz não pode ser um mero aplicador das regras aprovadas pelos Parlamentos e Governos, devendo tomar as suas decisões, principalmente nos casos judiciais considerados difíceis, “de acordo com as suas preferências políticas ou morais”, como esclarece Ronald Dworkin, em sua obra “Levando os direitos a sério”.
A partir daí, ocorreu um gradativo esvaziamento na aplicação direta das regras jurídicas e prevaleceu um imenso grau de interpretação e aplicação de princípios jurídicos, que passaram a ser empregados segundo a convicção pessoal de cada juiz.
Com isto, as Cortes de Justiça deixaram de ser aplicadoras das normas jurídicas (regras e princípios) para tornaram-se criadoras de normas de Direito, que, em muitos casos, não estão previstas com clareza nos textos constitucionais nem nas demais leis e regulamentos produzidos pelas instituições políticas.
Além disso, neste mesmo embalo, os movimentos sociais e grande parcela da sociedade civil passaram a depositar as esperanças de concretização de seus objetivos nas mãos dos Tribunais, por meio da judicialização da política, em razão da ausência de resposta governamental a suas demandas políticas, sociais e econômicas, o que deu origem ao fenômeno da judicialização da política.
Contudo, não será jamais nas Cortes de Justiça que os problemas políticos serão solucionados, mas sim nos espaços públicos de discussão, nas ruas, nos parlamentos e nos governos, mediante a atuação das pressões que somente a sociedade pode exercer sobre os políticos.
O descrédito na política, como se vê hoje por todo o mundo, traz em si o fracasso da sociedade, cujos integrantes não conseguem se organizar nem se unir para lutar por cidadania e fazer prevalecer seus interesses.
O que se constata atualmente é que as pessoas estão se desinteressando da vida política e permitindo que os espaços públicos sejam ocupados por indivíduos que jamais irão trabalhar para o benefício da coletividade, pois representam os interesses mais sombrios dos mercados e de outros grupos privados.
Assim, é mais fácil para os cidadãos ficarem acomodados, protestando à distância e entregando a solução de seus problemas nas mãos da burocracia, principalmente a judicial e aquelas constituídas pelas demais forças repressivas, como o ministério público e a polícia.
Contudo, as referidas instituições não foram criadas para serem o centro da arena política. Isto porque constituem entes estatais auxiliares, que existem para facilitar o controle e o exercício do poder pelo Estado e, sendo assim, costumam agir contra os interesses da coletividade e em favor dos interesses dos grupos dominantes que se tenham apropriado da condução da política.
Quando um determinado Estado passa a ser controlado dessa forma, o que se tem observado é que os direitos liberais fundamentais, constituídos em proteção e defesa da sociedade civil, passam a não ser mais respeitados. Assim, o habeas corpus e a própria presunção de inocência passam a ser aplicados com restrições ou são até mesmo negados em sua plenitude.
Não é crível que o habeas corpus, instrumento jurídico criado para dar proteção máxima contra as arbitrariedades praticadas ante o direito natural de ir e vir, possa ser limitado por questões meramente formais e até mesmo morais, como se tem visto nos discursos e votos de juízes da Suprema Corte do Brasil.
Pois o habeas corpus é um instrumento processual que visa garantir a liberdade das pessoas e deve ser analisado em qualquer hipótese para se saber se um determinado indivíduo – quem quer que seja – está sofrendo uma violência por parte das instituições estatais.
Da mesma forma, não se pode limitar a presunção de inocência enquanto não transitar em julgado uma pretensão criminal contra um cidadão.
Nesse ponto, para entendimento geral, proponho que seja feita a seguinte reflexão: “se uma ação viola um direito fundamental, isto significa que, do ponto de vista dos direitos fundamentais, ela é proibida”. É o que diz Robert Alexy, na obra Teoria dos Direitos Fundamentais.
É inaceitável que princípios fundamentais que constituem o próprio cerne dos direitos estendidos pelo Estado para garantia dos cidadãos (de qualquer cidadão!) sejam desrespeitados por representantes de instituições criadas meramente para instrumentalizar a ação do Estado na construção do bem-estar coletivo.
Isto porque o Estado não existe por si só e, se existe e manifesta qualquer ínfima medida de poder, todo o poder que detém emana de quem o constituiu em primeiro lugar: o povo, e não as instituições, que lhes devem total obediência.
JORGE FOLENA – Advogado; Doutor em Ciência Política, com Pós-Doutorado, Mestre em Direito; Diretor e Vice-Presidente da Comissão de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros. É colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre e dedica-se à análise das relações político-institucionais entre os Poderes Legislativo e Judiciário no Brasil.
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