Por Luiz Carlos Prestes Filho –

Em entrevista exclusiva para o jornal Tribuna da Imprensa Livre, Claudia Caldeira afirmou: “Eu sei de onde venho. Sou uma portovelhense, filha de mãe rondoniense e de pai paraense, criada por uma avó descendente dos índios Tembé, o Norte pulsa em mim. Vim desse lugar distante, diferente sim, muito diferente, muitas vezes esquecido, seguidamente explorado, mas com encantos que só quem cresceu às margens de um rio chamado Madeira, `a sombra de uma “ferrovia do diabo”, pode saber. Meu berço musical tem raízes muito fortes no folclore, na tradição oral, nas brincadeiras de roda, nas festas juninas, quadrilhas, boi-bumbás, carnaval de rua e de clubes, no carimbó cantado e dançado dentro de casa, nos forrós noite adentro, tudo isso está dentro de mim e fala em mim quando componho porque componho para me comunicar e comunico o que acredito, sinto e amo.” Para a compositora:

“O trompete é um instrumento rico em sonoridade, podendo tocar muito baixinho e muito, muito forte, mantendo presença marcante qualquer que seja a dinâmica. Pode fazer melodias muito cantabiles, de grande lirismo e também pode se expressar em ritmos muito rápidos, vai do frevo ao jazz, da toada ao samba, do Concerto Brandemburguês nº2 à 5ª Sinfonia de Mahler, é encantador!”

Claudia Caldeira realizou bacharelado em Composição na UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), bem como os cursos de Mestrado (2004) e Doutorado (2009), sempre sob a orientação do Prof. Dr. Ricardo Tacuchian. Em 2000, teve uma de suas composições lançadas no CD Estúdio de Música Eletroacústica, produzido pelo Estúdio de Música Eletroacústica do Instituto Villa-Lobos, sob a responsabilidade da professora e compositora Vânia Dantas Leite. Lançado em outubro de 2001, o CD do grupo Trompetando, de São Paulo, incluiu sua peça para quarteto de trompetes, intitulada Meraca, composta para o Grupo de Trompetes da UNIRIO em 2000. Suas composições incluem, entre outras, peças para piano solo, canto e piano, trompete e piano, orquestra de cordas, quinteto de metais, grupo de trompetes, banda sinfônica, trompete e orquestra. Esta última teve sua estreia realizada pelo primeiro trompetista da Boston Symphony Orchestra, o Prof. Charles Schlueter, em maio de 2003. Os mais relevantes produtos de sua pesquisa acadêmica foram a realização da Versão para dois pianos e barítono da Sinfonia nº10 “Amazonas”, de Claudio Santoro, no mestrado, e a composição da Abertura Sinfônica Céus de Rondônia, no doutorado. Em 2010, foi professora substituta da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). De agosto de 2010 a agosto de 2013, foi professora efetiva da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Hoje faz parte do quadro de professores do Departamento de Composição e Regência da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

Luiz Carlos Prestes Filho: Música de Concerto, Música Erudita ou Música Clássica?

Claudia Caldeira: Eu gosto do termo Música de Concerto, definida como uma música concebida para ser tocada em um ambiente acusticamente apropriado. Entendo que quando as pessoas utilizam o termo Música Clássica, na maioria das vezes estão se referindo à Música de Concerto, seja de qual período for, mas acho que hoje já não soa tão apropriado. O termo Música Erudita desqualifica as músicas que se utilizam de outros meios de concepção, criando embates desnecessários.

Capa do CD Música Eletroacústica

Prestes Filho: Música Eletrônica, Música Eletroacústica ou Música Acusmática?

Claudia Caldeira: Compus música eletroacústica quando ainda era estudante do Curso de Composição na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), na classe de Vania Dantas Leite. Após o término do curso me envolvi muito com a composição acústica e não criei oportunidades até agora para voltar a produzir música eletrônica. É um universo envolvente e repleto de infinitas possibilidades criativas. Mas deixo a discussão da nomenclatura mais adequada para os especialistas envolvidos com esse fazer musical.

Equipe de Música do Encontro do Grupo de Jovens da Paróquia Nossa Senhora do Brasil. Urca, Rio de Janeiro

Prestes Filho: Seu primeiro instrumento foi o piano. Como este instrumento influenciou a sua trajetória e obra? Como foi estudar piano em Porto Velho, sua cidade natal? Quem foram seus primeiros professores? O que mudou quando você começou a estudar com Antônio Guerreiro, Ernani Aguiar e Ruth Serrão? As suas obras para piano solo e canto piano demonstram que este instrumento foi e continua sendo fundamental.

Claudia Caldeira: O piano sempre me causou fascínio, não sei explicar o porquê. Quando criança não tive oportunidade de ver alguém tocando, não havia recitais na minha cidade, não havia escolas de música. Mas na escola em que minha mãe trabalhava, um colégio salesiano de freiras, Instituto Maria Auxiliadora, havia um piano de armário no teatro da escola. A presença daquele piano sempre me encantou. Eu sabia que havia uma professora na cidade, uma moça que dava aulas em sua própria casa, mas meus pais não podiam pagar aulas particulares. E eu cresci guardando dentro de mim essa enorme vontade de aprender a tocar piano, sem referências, sem mais nem porque, acho que ela nasceu quando eu nasci. Na época em que ingressei como estudante de composição nos era cobrada uma maior habilidade no instrumento em relação ao que é hoje, e na grade curricular havia disciplinas obrigatórias de piano, o que não mais ocorre. Ter habilidades em um instrumento como o piano facilita a vida do estudante de composição em muitos aspectos: no estudo de harmonia, análise de partituras, percepção, e a familiaridade com um instrumento tão complexo é uma importante motivação para a escrita. Então, sob este aspecto, é normal que as primeiras peças tenham sido para piano. E mesmo quando pensamos em escrever para um instrumento melódico, o piano estará quase sempre lá, como parceiro comum. Minha mãe, certo dia, recebeu na escola em que trabalhava uma professora que foi levar seu currículo para pleitear uma vaga no referido instituto. Esta professora, Cristina Neivock, havia chegado há pouco na cidade, acompanhando seu marido. Lá ela inaugurou um conservatório, denominado Conservatório Musical e Artístico Ernesto Nazareth. Minha mãe comentou com ela sobre o meu desejo de estudar piano e pela primeira vez foi incentivada e convencida a me matricular naquele conservatório. Eu tinha 12 anos de idade e via a vida enfim começar a fazer sentido. Cristina era uma professora fantástica, uma apaixonada pela música e pelo ensino musical, uma animadora cultural, dirigiu o coral da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), agregou estudantes universitários interessados em música, talentos musicais, músicos da cidade, realizava lindos recitais de fim de ano.

Capa do CD A majestosa e o príncipe de Quipapá

Com doze anos eu saía de casa todo sábado à tarde para ensaiar com um coral de universitários, viajávamos para fazer apresentações… era extraordinário para mim. O Conservatório ganhou muita visibilidade e o governo do Estado quis comprá-lo e fazer daquilo um grande projeto. E assim foi feito. O investimento, como sempre, não foi o esperado, mas muito mais pessoas podiam estudar música agora, uma vez que o Conservatório passou a ser público. Minha evolução foi muito rápida. Aos 14 anos eu já fazia parte do quadro de professores do Conservatório, ensinando piano para iniciantes. Mas meus pais não queriam que eu ficasse restrita à educação que Porto Velho podia me proporcionar naquele momento, e foi assim que aos 15 anos vim para o Rio de Janeiro. No Rio eu não tinha outra referência de escola de música que o Conservatório Brasileiro de Música (CBM), não lembro quem me passou essa indicação, então fui estudar lá. Morava no Irajá, cursava o 2º ano do 2º grau numa escola-curso em Madureira. Meu professor de piano no CBM me pediu para dar aulas aos alunos de teoria musical e aos iniciantes de piano. Eu sempre gostei de ensinar, mas meus estudos não progrediram no CBM. Além disso eu não sabia nada sobre o que poderia usufruir numa cidade como o Rio de Janeiro, eu não sabia o que a vida cultural de uma cidade tão diferente da minha poderia proporcionar ao meu aprendizado artístico, eu não sabia o que precisava estudar, que precisava ver e ouvir bons artistas, conhecer os espaços culturais… nenhuma orientação me foi dada no tempo em que estive no CBM, nada, eu perdi um tempo precioso com isso. Eu já estava estudando Agronomia na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) quando conheci o professor Leopoldo Touza, em uma das poucas vezes em que ele foi à Rural. Tive uma ou duas aulas com ele, suficientes para perceber que não deveria mais frequentar o CBM, sobretudo com o enorme sacrifício que fazia para ir da Rural até lá uma vez por semana e, no mesmo dia voltar. Foi também na Rural que conheci o maestro Ernani Aguiar. Ernani não foi meu professor, tivemos rápidas, mas boas conversas na Sala de Extensão da Rural. Tempos depois voltamos a nos encontrar, agora ambos já na UNIRIO, ele professor de Regência, eu estudante de composição, quando tive a grande honra de ter minha primeira peça para orquestra de cordas estreada por ele, com a Orquestra da UNIRIO. Após sair do CBM tive aulas de piano com Roseana Barbosa, uma ótima professora. Mas em viagem de férias à Porto Velho, minha antiga professora me recomendou que estudasse com Antônio Guerreiro, que ela havia conhecido em um festival, recomendou muito. E foi assim que comecei a ter aula particular com a lenda do ensino da harmonia chamado – Antônio Guerreiro. Estudei vários anos sob a orientação de Guerreiro, porque após os anos de aulas particulares ingressei na UNIRIO e lá segui estudando com ele. Foi ele quem me indicou à pianista Ruth Serrão, com quem meus estudos de piano foram definitivamente aprofundados.

Mas era tarde demais, Guerreiro já me havia aberto a porta para a composição, e eu entrei, de uma vez!

Capa do CD Trompetando

Prestes Filho: Beber na fonte da cultura brasileira foi importante para o surgimento da sua linguagem própria? As obras “Pato Tucupi”, “Rabada no Tucupi” e “Tacacá” tem relação direta com sua identidade, cultural e étnica? Suas composições no gênero frevo de bloco e de frevo canção tem relação com o seu interesse pelo imaginário musical brasileiro? A obra “Abertura Rondônia” estaria neste contexto?

Claudia Caldeira: Eu sei de onde venho. Sou uma portovelhense, filha de mãe rondoniense e de pai paraense, criada por uma avó descendente dos índios Tembé, o Norte pulsa em mim. Vim desse lugar distante, diferente sim, muito diferente, muitas vezes esquecido, seguidamente explorado, mas com encantos que só quem cresceu às margens de um Rio chamado Madeira, `a sombra de uma “ferrovia do diabo”, pode saber. Meu berço musical tem raízes muito fortes no folclore, na tradição oral, nas brincadeiras de roda, nas festas juninas, quadrilhas, boi-bumbás, carnaval de rua e de clubes, no carimbó cantado e dançado dentro de casa, nos forrós noite adentro, tudo isso está dentro de mim e fala em mim quando componho porque componho para me comunicar e comunico o que acredito, sinto e amo. O frevo sempre esteve presente no carnaval de rua de Porto Velho, não com a força do frevo Pernambucano, obviamente, mas por influência em grande parte dos nordestinos que migraram para o Estado de Rondônia e também foram pioneiros e ajudaram a povoar a região. E desde que me casei, há mais de 20 anos, com o trompetista pernambucano Nailson Simões, raramente não passo um carnaval no Recife. Lá sua família tem um bloco, chamado “A Majestosa e o Príncipe de Quipapá” para o qual compus as músicas, registradas no EP comemorativo dos 10 anos do bloco. “Abertura Rondônia” é uma abertura festiva que compus como um dos trabalhos finais da minha tese de doutorado.

É uma explícita homenagem ao meu Estado, e tem no meio da peça uma citação do hino de Rondônia, que é um hino muito bonito, por sinal, entoado com orgulho por todos nós, rondonienses.

Curso de Licenciatura em Música da Universidade de Rondônia

Prestes Filho: A saudade de sua terra natal persiste nas suas composições hoje? Tem o mesmo impacto como nos tempos quando você realizou a suíte para piano em três movimentos: (1) Promessa; (2) Pranto; e (3) Prazer?

Claudia Caldeira: Promessa, Pranto e Prazer são os três movimentos da música “Pra piano nº1”, minha primeira peça. Os títulos falam dessa saída, da vida que eu buscava naquele momento, dos sonhos, a promessa. Na partida o pranto de deixar a segurança de casa, o amor, o sofrimento de minha mãe. E o prazer de finalmente ter aceito que a música seria mesmo o meu caminho. Naquela época eu tinha uma saudade ansiosa, estava sempre partindo de volta, construía um caminho que não sabia direito onde iria me levar e como saí muito cedo de casa tinha muita vontade de voltar. Tinha minha mãe, tinha colo, tinha as amigas. Tudo isso passou, a ansiedade deu lugar a muitas certezas, e a principal delas é de que tudo de que tenho saudade está dentro de mim, na minha memória, que acende cheiros, abraços, mormaços, gostos e tudo que preciso para me inspirar e ir, a qualquer hora.

Minhas composições falam de tudo que sinto, e sempre sentirei saudades da minha terra, sei disso.

Capa do CD Maico Lopes

Prestes Filho: Quem são aqueles críticos que realizam um trabalho sobre música contemporânea, no Brasil e no exterior, que merece seu reconhecimento?

Claudia Caldeira: Não tenho conhecimento sobre o trabalho de críticos da música contemporânea.

Prestes Filho: Cite nomes de compositores que foram fundamentais para a sua formação. Cite nomes de compositores de Música Eletroacústica que você acompanha no Brasil e no mundo. Também, algumas obras que tem importância estruturante para sua formação. Sua formação foi em música instrumental, como surgiu seu interesse pela música eletroacústica?

Claudia Caldeira: Compositores fundamentais para a minha formação: em primeiro lugar, meu grande mestre, o compositor Ricardo Tacuchian, com quem tive o enorme privilégio de estudar durante toda a minha formação. Tacuchian foi meu professor de Composição durante todo o Bacharelado e foi meu orientador nos cursos de Mestrado e Doutorado. Em seguida a compositora Vânia Dantas Leite, minha professora também na graduação, nas classes de Composição Eletroacústica. O professor Dawid Korenchendler, com que estudei contraponto, o professor Antônio Guerreiro, de quem já falei. Como não é minha área de atuação neste momento, não acompanho de perto compositores de renome mundial na música Eletroacústica. Mas conheço e acompanho o trabalho de meus colegas, em especial os da UNIRIO, que fazem e divulgam a música eletrônica com extrema competência, destacando-se nacional e internacionalmente. Obras estruturantes para a minha formação são as obras de Claudio Santoro, sobretudo as sinfonias, sobre as quais me debrucei durante os cursos de Mestrado e Doutorado. Durante o curso de Mestrado estudei a Sinfonia nº10, Amazonas, que é uma sinfonia grandiosa e que inaugura uma nova fase de Santoro, independente de amarras estéticas. No curso de Doutorado estudei as Sinfonias 9, 10 e 11, integrando-as num sentido trilógico. A escrita livre, apaixonada e rica em detalhes orquestrais são alguns dos elementos mais significativos para mim em Santoro, a busca da forma através do equilíbrio são características muito importantes e maneira como ele realiza isto me marcaram profundamente. A formação em música eletroacústica é parte integrante e muito importante da grade curricular do bacharelando em Composição na UNIRIO.

Eu tive o privilégio de ter sido aluna de Vânia Dantas Leite, uma das grandes compositoras brasileiras, além de ter sido uma enorme batalhadora e incentivadora das produções nesta área.

Grupo de Trompetes da UNIRIO – objeto de pesquisa

Prestes Filho: No ano 2000 você teve uma de suas composições lançadas no CD “Estúdio de Música Eletroacústica”. Você acompanha os movimentos de Música Contemporânea? Quais poderia destacar? Poderia citar os artistas brasileiros e estrangeiros da atualidade? Na distância do tempo, como você hoje sua obra para trompete e fita: “Mata Verde Cinza Mata”.

Claudia Caldeira: Enquanto compositora e professora acredito ser eu mesma parte do movimento da música contemporânea no Brasil. Porém, quanto às iniciativas corporativistas por assim dizer, considero que há alguns movimentos importantes que buscam fomentar a visibilidade e divulgação da música contemporânea no Brasil, como a Coordenação de Documentação de Música Contemporânea (CDMC), o Festival de Música Contemporânea Brasileira (FMCB), o Brazilian Brass Music, o Concurso Nacional de Piano em Ituiutaba, a Bienal de Música Brasileira Contemporânea, o Panorama de Música Atual, a Bienal de Ópera Atual, entre outros. Penso que minha peça “Mata Verde Cor de Cinza Mata” é mais atual do que nunca, não é? Essa peça é um lamento, uma dor sentida no fundo da alma por todas as atrocidades que fazem, e não é de hoje, com a floresta e com o povo da floresta. Lembro que com 11 anos de idade participei de uma feira de ciências no meu colégio e propus como tema o desmatamento de nossa floresta, a Amazônia. Para melhor apresentar o assunto fui ao Ibama solicitar dados precisos e tive que ouvir do funcionário que me atendeu que eles não tinham como obter dados sobre o desmatamento.

Fiquei estarrecida, sem esperança e enxerguei um triste futuro para nossa floresta. Hoje os dados são claros, precisos, verdadeiros, mas os interesses escusos (ou nem tanto) permanecem ferozes.

CD, Duo, Nailson Simões e José Wellington

Prestes Filho: Você tem no seu repertório obras exclusivamente para trompete como “Os Seus Olhos”, “Bodas no Brum” e “Meraca”. O que mais atrai a compositora Claudia Caldeira neste instrumento? Quais especificidades para composição? Qual é o desafio na realização de uma obra para trompete e orquestra?

Claudia Caldeira: Eu fui atraída e estou até hoje rendida pela sonoridade arrebatadora do trompete de Nailson Simões. Eu estava indo para uma aula no Instituto Villa-Lobos (IVL) quando ouvi um som maravilhoso vindo da Sala Villa-Lobos. Fui até lá e estava acontecendo um recital de trompete e piano. Fiquei completamente apaixonada por aquele som, pela interpretação… é qualquer coisa de divino o que Nailson é capaz de fazer com uma música. Algum tempo depois o professor Tacuchian me pediu como trabalho de composição que fizesse uma peça para instrumento solo com piano. Não tive dúvidas, fiz uma peça para trompete e piano e quando chegou a ocasião do recital de final de semestre levei a peça ao professor Nailson e perguntei se ele poderia tocá-la. Ele prontamente aceitou. A partir dali não parei mais de compor para trompete, nem larguei mais o trompetista! Estabelecemos, eu e Nailson uma parceria na vida e na música.

Na vida ela rendeu um casamento que já dura mais de 20 anos e dois filhos encantadores.

Claudia Caldeira, o marido Nailson e os filhos Joaquim e Cecy

Na música muitas peças para trompete, muita pesquisa, muitas apresentações. Em parceria com o Grupo de Trompetes da UNIRIO (GTU), fundado por Nailson, venho desenvolvendo há vários anos pesquisas na área de composição para trompete. O GTU é um grupo que funciona como laboratório para estas experimentações. O trompete é um instrumento rico em sonoridade, podendo tocar muito baixinho e muito, muito forte, mantendo presença marcante qualquer que seja a dinâmica. Pode fazer melodias muito cantabiles, de grande lirismo e também pode se expressar em ritmos muito rápidos, vai do frevo ao jazz, da toada ao samba, do Concerto Brandemburguês nº2 à 5ª Sinfonia de Mahler, é encantador! É muito importante, porém, respeitar o limite físico que este instrumento impõe, ter atenção ao uso dos agudos, aos espaços para respirar, não exaurir a embocadura.

O trompete é um instrumento de muita presença, é muito bom compor para trompete porque ele carrega, ele lidera, ele chega e acontece.

Bienal de Música Contemporânea – Bodas no Brum – Duo Nailson Simões e José Wellington

Prestes Filho: Como foi o processo de realização da Versão para dois pianos e barítono da Sinfonia nº10 “Amazonas” de Claudio Santoro?

Claudia Caldeira: A Sinfonia nº10 “Amazonas” de Claudio Santoro é exuberante, grandiosa, 45 minutos de música orquestral do mais alto nível. Santoro é esse compositor grandioso, precisa ser elevado ao mais alto patamar, precisa ser muito mais tocado, muito mais conhecido e reconhecido. Na minha tese de mestrado faço a análise desta obra e sua versão para dois pianos e barítono. O barítono está presente apenas no IV movimento da Sinfonia, mas é o suficiente para ser terno e lindo. Foi um trabalho envolvente e gratificante que foi sendo realizado concomitantemente à análise da peça.

A sonoridade de Santoro é única, então realizar uma versão para dois pianos é fazer um exercício de enxergar as tramas sonoras em seus meandros mais profundos.

Gravação do EP A majestosa e o príncipe de Quipapá – Estúdio Copacabana

Prestes Filho: A palavra está presente nas suas composições como em “O Filho do Boto”. O que vem primeiro, a palavra ou a música?

Claudia Caldeira: Cada compositor tem o seu processo, e cada música tem a sua forma de se mostrar. Na música de concerto, geralmente partimos da letra para a música. Em “O filho do Boto” utilizei uma poesia de Bolívar Marcelino, um poeta nortista que gostava de exaltar as virtudes de nossa terra. A palavra move, se move e dá a forma. Em “A cada duas horas, a cada dez minutos” eu criei o texto a partir de notícias extraídas dos jornais e da internet e finalizei com uma frase de Clarice Lispector. Nos frevos de bloco e frevo canção do EP “A majestosa e o príncipe de Quipapá” conto com parcerias valiosas, a principal delas é a de Patrícia Simões, psicóloga e pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco, que normalmente me entrega uma letra que de tão pronta já vem até dançando e vestida de passista.

Grupo de Trompetes da UNIRIO

Prestes Filho: Qual tem sido a contribuição dos compositores brasileiros vivos de música contemporânea para com o desenvolvimento da técnica da escrita musical? Podemos identificar uma proposta brasileira? A nossa música contemporânea não deve nada para a música de qualquer outro país?

Claudia Caldeira: Nossas universidades públicas são providas de cursos de excelência em Composição Musical, o que tem garantido a formação de compositores altamente capacitados, com carreiras quase sempre bem sucedidas nas mais diversas áreas a que se propõem, aqui ou no exterior. A nossa música contemporânea é diversa e rica, porque assim o somos, mas carece de mais instrumentistas que a apoiem, que se dediquem ao seu estudo e divulgação, que estabeleçam parcerias e interações, que formem grupos e laboratórios de experimentações, que se empenhem para que essa música aconteça hoje.

Prestes Filho: Qual sua opinião sobre a presença das mulheres em atividades musicais? O número de compositoras na Academia Brasileira de Música (ABM) é muito pequeno. Seria possível uma reflexão sobre este tema? Você afirmou em recente depoimento que: “é necessário tirar as compositoras da invisibilidade”; “os homens inventaram e impuseram esse lugar de privilégio, como se as mulheres existissem para servir”; “que as mulheres tem que ser protagonistas na música”.

Claudia Caldeira: As mulheres tem que ser protagonistas das suas vidas! O machismo incide sobre nossas vidas com um peso milenar e cega a ponto de nos permitirmos repetir o mesmo comportamento de nossas mães, avós, bisavós, tataravós. Como um mal que adoece toda a sociedade, que fere e que mata, é preciso identificá-lo em todas as suas vertentes e combatê-lo conjuntamente. Homens e mulheres precisam mudar de atitude, porque precisamos que pais e mães eduquem filhos e filhas capazes de enxergar a todos como iguais.

Lançamento do EP A majestosa e o príncipe de Quipapá – Praça de Casa Forte – Recife (PE)

Prestes Filho: A Academia Brasileira de Música (ABM) desempenha papel importante na difusão da música brasileira. Você entende que o compositor deve participar de associações e sindicatos para encaminhar reivindicações e participar ativamente das lutas populares?

Claudia Caldeira: Sim, entendo que é nosso dever enquanto cidadãos, construir o ambiente ao qual estamos inseridos profissionalmente da melhor maneira que formos capazes, para nosso usufruto, e para usufruto dos que virão, para garantirmos que viverão melhor do que nós, e que engendrarão lutas por condições ainda melhores e não sempre pela manutenção do mínimo.

É preciso pensar que o nosso país pode ser um lugar digno de se viver, que não seja para nós, nem para nossos filhos, mas o será para nossos netos se nos unirmos agora.

Encontro de Trompetes 2006 com Nailson Simões e Charles Schlueter

Prestes Filho: O espaço para a Música Contemporânea no Brasil está reduzido. São poucos patrocínios que a iniciativa privada disponibiliza e as políticas públicas estão cada vez mais limitadas. Quais perspectivas para os próximos anos?

Claudia Caldeira: É necessário muito empenho dos movimentos em prol da música contemporânea, é necessário nos abrirmos para um novo uso dos espaços e das formas de fazer arte, é necessário trabalharmos juntos, agregando, é necessário que estas iniciativas partam também de dentro da universidade, e principalmente, é necessário que mudemos urgentemente o atual cenário político em que nos encontramos para vislumbrarmos qualquer chance de futuro para a nossa arte como um todo.

Prestes Filho: Quais são as orquestras brasileiras que você admira como compositora? Quais são as maestrinas e os maestros que mais tem intimidade com sua obra?

Claudia Caldeira: Admiro os trabalhos feitos de forma séria, que respeitam em primeiro lugar a música, onde os egos e o dinheiro não se sobrepõem à arte. E há várias pessoas trabalhando seriamente e há tempos. Se um maestro ou maestrina se preocupa em mostrar a música brasileira feita hoje, sem preconceito de linguagem estética, certamente eu o admiro. Em 2017, para minha felicidade, dois maestros se dedicaram a uma mesma obra minha, a Abertura Rondônia. Duas orquestras pelas quais tenho imenso respeito: a Orquestra da UNIRIO, exclusivamente formada pelos estudantes de Bacharelado em Instrumento e dirigida pelo professor Guilherme Bernstein, e a Orquestra Sinfônica da Nacional de Universidade Federal Fluminense (OSN/UFF), cujos músicos são todos funcionários públicos federais concursados. Na ocasião de minha peça a OSN estava sob a batuta do maestro Tobias Volkmann. A maestrina Sarah Higino é sem dúvida uma das pessoas que mais admiro. O trabalho que desenvolve há décadas, juntamente com o maestro Nicolau Oliveira, é um modelo a ser seguido. Sarah realizou a audição de minha peça para três trompetes e banda sinfônica, denominada “Prazeres”. Esta peça foi encomendada pela Associação Brasileira de Trompetistas (ABT) e estreada pela Banda Sinfônica do Conservatório de Tatuí, sob a regência do maestro Marcelo Maganha.

Prestes Filho: Está surgindo uma nova geração de compositores? Quem seriam eles?

Claudia Caldeira: De compositores e sobretudo de compositoras, espero eu! O tempo dirá quem serão.

LUIZ CARLOS PRESTES FILHO – Diretor Executivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre; Cineasta, formado em Direção de Filmes Documentários para Televisão e Cinema pelo Instituto Estatal de Cinema da União Soviética; Especialista em Economia da Cultura e Desenvolvimento Econômico Local; Coordenou estudos sobre a contribuição da Cultura para o PIB do Estado do Rio de Janeiro (2002) e sobre as cadeias produtivas da Economia da Música (2005) e do Carnaval (2009); É autor do livro “O Maior Espetáculo da Terra – 30 anos do Sambódromo” (2015).


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