Por Lincoln Penna

Vivemos uma situação a exigir a restauração da dignidade nacional brasileira.

Ou bem estamos dispostos a conviver com o caos que anuncia tempos de iminente barbárie numa escalada inusitada, ou tenhamos uma atitude proativa de modo a voltarmos aos tempos de construção de uma nação civilizada.

Claro que não me refiro ao domínio de uma sociedade nos moldes de padrões que nos impuseram os conquistadores durante a expansão mercantil. Refiro-me à integração de nossos povos de origem e de procedências africana e européia. Este Brasil multicolor e culturalmente diverso que tem sido atualmente banalizado e agredido pelo governo da destruição presidido por Bolsonaro. É pena que os militares não tenham hoje um Rondon para servir de exemplo e modelo inspirador na defesa dos vulneráveis. Aliás, é bom voltar a tratar desse tema dos militares. Eles têm enormes responsabilidades pelo passado e pelo presente.

Tenho insistido que a República foi desde sua implantação um regime sob a custódia dos militares. Sei que há muitos que contestam essa tese e preferem empregar com freqüência o termo intervenção nas várias incursões dos homens de farda na vida política nacional, como se eles não conduzissem o regime que proclamaram desde o seu início, mesmo não estando à frente da representação governamental.

No seio das corporações militares essa atitude intervencionista quando se torna ostensiva tem para eles um caráter corretivo, nos momentos em que se aprofundam as crises políticas. Os fatos comprovam essas seguidas investidas no ordenamento político e constitucional. Dessa maneira, o acatamento às regras constitucionais, para eles, tem limites, de acordo com a premissa que sustentam na prática, ou seja, de que são eles os responsáveis pelos rumos do regime.

Na origem, em razão de assumirem um papel saliente na derrubada da monarquia, essa convicção de que o novo regime lhes pertence tinha um sentido mais simbólico, muito embora aquela geração manifestasse indisfarçável antipatia em relação aos quadros políticos das oligarquias apegadas aos cargos públicos. Contra os civis detentores do poder, a primeira geração dos militares do Exército cultivaria os princípios de austeridade cívica do Positivismo e aderiu à República.

Os acontecimentos do entre – guerras (1918-1939) provocaram divisões na caserna. A começar pela mudança do valor atribuído ao que se podia denominar de pertencimento da República por parte dos militares. Passou a dar lugar ao culto de um fenômeno aguçado nesse período, o do anticomunismo. Adensado pelo Levante de 1935, mais conhecido pela historiografia convencional de Intentona Comunista, resultaria no comportamento da corporação na maior proximidade com a geopolítica imperialista americana, com nefastas implicações para a soberania do país.

Com a crise capitalista se aprofundando também crescia suas contradições que se fundam no interesse público, o qual tenderia a ampliar os direitos e oportunidades para todos.

Nesse embate entre os interesses capitalistas e a democracia de inspiração social, cuja prática pressiona a incorporação de novas demandas, o papel dos militares precisava ser redefinido com urgência. Ou bem eles seriam meros operadores das classes dominantes, papel que em suas origens rejeitaram em vários momentos; ou se tornariam efetivamente cidadãos e neste caso acolheriam as velhas e novas demandas em prol da República. Nos anos de 1950 essa questão era colocada. E o golpe de 64 começaria aí.

O que não pode acontecer é presentemente essa demonstração equivocada e absolutamente anti-republicana e antidemocrática de tomar partido de arroubos pessoais, que têm ganhado também um sentido absurdamente negativo do ponto de vista do corporativismo. Este tal partido militar (?) surgido no atual governo Bolsonaro, no entanto, não estaria interessado em propor soluções para o país, mas em buscar a todo custo defender os desvios de seus camaradas. E o pior, em faltas graves e intoleráveis como a corrupção, atitude que sempre repudiaram no caso dos políticos civis.

Bolsonaro não foi tão somente desastroso, criminoso e entreguista, além de defensor das torturas praticadas pela ditadura de 64. Em sua gestão voltada para destruir a democracia, ele não somente foi responsável direto e indireto pelas centenas de milhares de mortos pela covid 19, como em sua fúria persecutória tem contribuído para macular uma instituição como as Forças Armadas, que precisam reagir desvinculando-se desse seu algoz contumaz.
Não é mais possível amparar um presidente genocida. Cabe aos militares reaverem suas origens. Elas são dignas porque em sintonia com as forças sociais à época compromissadas com a construção de uma sociedade cidadã, livre e soberana, por isso mesmo conquistaram a credibilidade alcançada.

A apropriação da República por grupos militares sob o comando de um tresloucado presidente não só compromete a nação brasileira em sua diversidade e pluralidade como joga lama numa tradição que com erros e acertos tem conduzido a República. Afastar quem comete crimes de responsabilidade é um recurso legal. Não é golpe, mesmo que as oposições ao presidente tenham de alguma maneira interesse.

Dois ex-presidentes foram punidos pelo impeachment com muito menos argumentos para tal decisão. Pelo menos muito menos do que os que hoje sustentam os pedidos para o afastamento de Bolsonaro. Da mesma forma que se repudiam os golpes, o clamor civilizatório se faz presente.

Admitir a opção golpista supostamente apoiado em grupos militares, como costuma insinuar e por vezes dizer sem rodeios o candidato a ditador da República é, convenhamos, um acinte.

LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.


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