Por José Carlos de Assis –
Espanta-me o grau de desinformação da grande mídia brasileira a respeito de economia e dos assuntos internacionais em geral.
A forma entusiástica como foram comemorados os 16 anos de prosperidade alemã sob o governo de direita de Angela Merkel esconde a perversidade com que a Chanceler de Ferro submeteu o resto da Europa a políticas fiscais e monetárias extremamente restritivas, com sacrifícios quase insuportáveis para os povos da periferia europeia.
Perguntem a gregos, portugueses e italianos o que acham dos anos de ouro da grande Merkel? Aliás, não perguntem. Não saberão responder. Uma característica comum de todos os oprimidos é que não conseguem identificar as causas de sua vida de reiterado insucesso. Sobretudo quando a imprensa corrompida, consciente ou inconscientemente, não faz qualquer esforço pedagógico para esclarecer os mecanismos perversos por trás das políticas públicas favoráveis aos opressores.
Alguém por aí sabe o que quer dizer política fiscal-monetária restritiva? Não me refiro à semântica. Refiro-me ao conceito. Quando, no Brasil, a unanimidade da imprensa séria saúda como favoráveis políticas de superávit primário, equilíbrio orçamentário, teto de gastos, o povo segue atrás como gado cego, interpretando tudo isso como verdadeiro testemunho de responsabilidade fiscal – isto é, extremo cuidado com o dinheiro publico, evitando desperdícios e malversações.
Pobres diabos. Política fiscal e monetária restritiva é uma forma corrente de tirar dinheiro de pobre para favorecer os ricos. Nada mais nada menos que isso. É a mágica de impedir que o Estado aplique os recursos fiscais em obras e serviços favoráveis ao povo pobre e oprimido em geral e os transfira aos ricos na forma de benefícios fiscais, isenções tributárias, subsídios e outros favorecimentos. O mecanismo usado é aumentar a taxa de juros e reduzir os gastos públicos até o osso.
Por que a imprensa não explica isso? Simplesmente porque a imprensa é cúmplice das elites dominantes favorecidas por esse processo. Sem a cumplicidade da imprensa, é até possível que as pessoas reagissem espontaneamente a um regime fiscal-monetário que insiste em cortar gastos públicos mesmo quando os serviços prestados pelo Estado se deterioram. Nessa circunstância, o que o povo aprende a dizer com a imprensa é que é preciso fazer sacrifícios para as coisas melhorarem.
Entretanto, vejamos o que acontece no mundo real, e não no mundo das ideologias dominantes opressoras. O gasto público pode ser essencial ou secundário. Vamos dispensar logo este último: quando se tratar de gasto secundário, vamos ficar contra. E não se converse mais sobre o assunto. Agora vamos ao gasto essencial. Ele pode corresponder a serviços de manutenção da máquina pública para que ela possa funcionar normalmente. Digamos que ela seja financiada por impostos.
Agora vamos a um investimento novo em infraestrutura, fundamental para assegurar a disponibilidade futura de rodovias, portos, hidrelétricas e outros empreendimentos. Não faz sentido financiar esses investimentos com impostos, porque os impostos se agregam aos recursos correntes para a produção e circulação de mercadorias e serviços reproduzindo na situação corrente o fluxo do passado. Para investimentos verdadeiramente novos, é preciso dinheiro novo, ou seja, emissão.
O governo é o emissor monopolista de moeda e de dívida pública – isto, porém, quando a economia não esteja corrompida por coisas tão esdrúxulas como moedas sem garantia do Estado, ou cryptomoedas. Normalmente, fora situações em que prevalecem essas moedas marginais, a boa moeda emitida pelo Estado, em forma de sinais eletrônicos ou de dívida pública, é o melhor mecanismo de financiamento da infraestrutura e dos investimentos públicos realmente novos na economia.
Cuidado, porém. O Estado pode exagerar em gastos não produtivos. Uma vez ultrapassado esse ponto, a emissão monetária pode realmente gerar inflação, como temem os conservadores, pois se cria um descompasso entre economia monetária e financeira e economia produtiva (real). Para restaurar o equilíbrio entre essas duas, há duas alternativas: ou o Estado “enxuga” a esfera financeira lançando títulos públicos no mercado, ou redireciona os investimentos produtivos para controlar a inflação.
Simples assim.
O redirecionamento dos investimentos produtivos, sendo a chave para restaurar o equilíbrio econômico entre esfera financeira e esfera produtiva, está sujeito por sua vez a perversidades. E a maior de todas elas, no século XX, foi a perversidade nazista. Sob Hitler, o investimento público alemão foi direcionado para o rearmamentismo a fim de vingar a derrota na Primeira Grande Guerra. O poderio militar aumentou, mas, felizmente, a economia acabou submergindo em inflação.
Voltemos a Merkel. A Alemanha sob Hitler teve duas fases: a da recuperação da derrota, com um aumento espetacular do produto interno, e a do uso dos excedentes dessa produção, na guerra propriamente dita. Ambas foram financiadas por emissão monetária, mas na segunda fase os recursos reais usados na guerra excederam os recursos monetários. A isso se chama inflação por insuficiência de oferta. Só pode ser suprida por aumento de produção interna ou por importações. Merkel sabia disso.
É claro que, em situação de guerra, a via das importações esteve bloqueada, exceto por alguns acordos bilaterais limitados a que Hitler recorreu, inclusive com apoio de economias não nazistas, como a norte-americana. Por outro lado, estava bloqueada também a via do aumento da produção interna, por falta de matérias primas. Os alemães começaram a percorrer o mundo desesperados atrás de matérias primas, mas as exigências da guerra se impuseram antes de a meta ser atingida.
No pós-Segunda Guerra a situação mudou dramaticamente. Os mercados se abriram. Os norte-americanos despejaram grandes suprimentos de recursos na Europa, visando à recuperação de suas economias destruídas, e a forte base industrial alemã, preservada nos conflitos, deu conta do resto. A Guerra Fria colocou um ponto final na costura na medida em que os EUA puseram na Alemanha o peso maior de suas defesas contra o Pacto de Varsóvia. A Alemanha se valeu disso para ter uma política social democrata interna capaz de resistir, por si mesma, à atração soviética.
É nesse contexto, já derrubado o Muro de Berlim, que a jovem conservadora Angela Merkel, nascida no lado oriental, aparece como Chanceler de toda a Alemanha. Herdeira dos grandes avanços sociais democratas, ela participa, com seu partido conservador, do processo de destruição dessa grande herança política. A pergunta chave é: Por que então isso deu certo, se a Alemanha continuou avançando socialmente sem equilíbrios externos e internos?
A resposta, mais uma vez, é simples: Porque a Alemanha explorou e ainda explora o resto da Europa, não na forma brutal de Hitler, mas na forma suave das políticas monetárias e fiscais. Vejam: Com a capitulação dos franceses à moeda única, a Alemanha impôs o euro ao resto da Europa, pelo que seu superávit comercial nessa moeda comum tornou-se uma fonte de expansão monetária só limitada por sua própria capacidade industrial de produção, uma das maiores do mundo.
Desse modo, a Alemanha não precisa de expansão monetária stricto sensu para financiar investimentos novos estatais, sejam de caráter social, sejam de caráter produtivo ou estratégico. Por outro lado, a Guerra Fria sob proteção nuclear norte-americana evitou que desperdiçasse superávit comercial com gastos armamentistas. Nesse campo, Merkel desempenhou um papel positivo para o mundo. Aproximou-se de Putin e evitou que ele perdesse a cabeça na Ucrânia com as provocações da OTAN.
Agora a Alemanha desempenha novamente o papel de destaque que teve no século XX como centro da política mundial. O virtual empate nas últimas eleições entre conservadores e sociais democratas coloca uma interrogação para o futuro: Ou estes últimos buscam uma aliança folgada com o partido de Merkel, com sacrifício de seus ideais socialistas, ou apostam na nova força de esquerda.
Esta não fala numa política monetária “responsável” de que a Alemanha não precisa, mas de políticas de preservação ambiental de que não só Berlim, mas todo o mundo precisa efetivamente!
JOSÉ CARLOS DE ASSIS – Jornalista, economista, escritor, colunista e membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre; Professor de Economia Política e doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/UFRJ, autor de mais de 25 livros sobre Economia Política; Foi professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), é pioneiro no jornalismo investigativo brasileiro no período da ditadura militar de 1964; Autor do livro “A Chave do Tesouro, anatomia dos escândalos financeiros no Brasil: 1974/1983”, onde se revela diversos casos de corrupção. Caso Halles, Caso BUC (Banco União Comercial), Caso Econômico, Caso Eletrobrás, Caso UEB/Rio-Sul, Caso Lume, Caso Ipiranga, Caso Aurea, Caso Lutfalla (família de Paulo Maluf, marido de Sylvia Lutfalla Maluf), Caso Abdalla, Caso Atalla, Caso Delfin (Ronald Levinsohn), Caso TAA. Cada caso é um capítulo do livro; Em 1983 o Prêmio Esso de Jornalismo contemplou as reportagens sobre o caso Delfin (BNH favorece a Delfin), do jornalista José Carlos de Assis, na categoria Reportagem, e sobre a Agropecuária Capemi (O Escândalo da Capemi), do jornalista Ayrton Baffa, na categoria Informação Econômica. Em função das boas práticas profissionais recebeu em 2019 o Prêmio em Defesa da Liberdade de Imprensa, Movimento Sindical e Terceiro Setor, parceria do jornal Tribuna da Imprensa Livre com a OAB-RJ.
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