Redação

Eduardo Cunha perguntou ao diretor geral da Polícia Federal (PF) se poderia fazer um teste. O ano era 2006, e o então deputado visitava a Superintendência da PF no Rio para conhecer como funcionava o Guardião, programa que armazena e organiza ligações feitas e recebidas por pessoas investigadas pela corporação.

Cunha queria saber se, ao digitar um nome no computador diante dele, o sistema diria se aquela pessoa era alvo de uma investigação. O diretor da PF respondeu positivamente. O deputado digitou Eduardo Cosentino da Cunha.

OUSADIA – O episódio, contado no início do livro “Deus Tenha Misericórdia Dessa Nação: A Biografia Não Autorizada de Eduardo Cunha”, demonstra a ousadia com que o ex-deputado agiu durante toda a sua carreira política.

Com um estilo direto e ágil, o que facilita a compreensão, os jornalistas Chico Otávio e Aloy Jupiara partem de atividades suspeitas do pai de Eduardo, Elcy Cunha, na ditadura, para traçar o início da vida política do filho.

SUSPEITAS DE ILEGALIDADES  – Um fato fica evidente logo nos primeiros capítulos do livro: apesar de ter ficado conhecido nacionalmente apenas em 2015, quando foi eleito presidente da Câmara, e de ter protagonizado o processo de abertura de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) – o voto dele dá título ao livro –, Eduardo Cunha participou da política brasileira desde a redemocratização, sempre envolvido em episódios que tomavam as capas dos jornais por suspeitas de ilegalidades.

Ele fez parte da campanha presidencial de Fernando Collor, em 1989. Cheques de uma empresa da qual era sócio foram encontrados com PC Farias, testa de ferro do então presidente que acabou renunciando antes de sofrer o impeachment.

GRAMPOS DO BNDES – No Rio de Janeiro, Cunha presidiu a Telerj e, no final dos anos 90, aliou-se à família Garotinho. Segundo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, no segundo volume de “Diários da Presidência”, o ex-parlamentar também esteve envolvido nos grampos do BNDES. Tudo isso antes da virada do século.

A publicação é repleta de informações inéditas ou pouco conhecidas. Na campanha presidencial de 1989, por exemplo, foi Cunha quem descobriu a brecha que impugnou a candidatura de Silvio Santos.

O Partido Municipalista Brasileiro (PMB), pelo qual o apresentador concorria, havia realizado apenas cinco das nove convenções estaduais exigidas à época. Os autores reconstituem a atuação do ex-deputado, primeiro como líder do PMDB – hoje MDB – na Câmara, em 2013, e, depois, como presidente da Casa.

ATRITOS – Ao fazê-lo, demonstram que o rompimento do partido com o PT, que em última instância resultou no impeachment de Dilma, foi fruto de anos de atritos em que Cunha foi o protagonista.

A biografia é a narração da busca obstinada pelo poder. Não poderia ser diferente quando o biografado é acusado de manter uma bancada própria, com mais de 200 deputados, com quem repartiria o dinheiro de propinas.

O PODER “DERRETEU” – Mais do que a prisão, a cassação do mandato de Cunha, em setembro de 2016, pelos mesmos deputados que antes controlava, foi um sinal indiscutível: o poder, que tanto havia almejado, derreteu.

Na última frase do livro, Chico e Aloy advertem: “Para muitos, Cunha está enterrado na política, mas há registros de políticos que ressuscitam”.

###

ENTREVISTA  – CHICO OTÁVIO

Por que fazer uma biografia de Eduardo Cunha?
Com suas ações nos subterrâneos das negociatas políticas e sua ambição desmedida, Eduardo Cunha chegou à presidência da Câmara dos Deputados em um momento-chave do país, abrindo o processo de impeachment contra a presidente Dilma, o que levou o PT a perder o poder depois de 13 anos. Só isso já o transforma em um personagem interessante de ser investigado. Mas nós contamos toda a história dele, envolta em esquemas desde a entrada no PRN, durante a campanha de Fernando Collor de Mello à Presidência, atuação pela qual recebeu a presidência da Telerj. Sua influência foi nociva à Cedae, estatal de água e esgotos do Rio, e a Furnas. Ele é a expressão de um jeito de fazer política que marca nossa época.

Em que momento o senhor e Aloy Jupiara decidiram escrever este livro?
Aloy e eu tínhamos acabado de escrever “Os Porões da Contravenção”, sobre a aliança entre bicheiros e militares, que profissionalizou o crime organizado. Isso foi em 2015. Eu já escrevia reportagens sobre Cunha havia cerca de 20 anos, e, naquele momento, o deputado estava no auge do poder. Então, nos juntamos em 2016 para traçar a sua história, revelar o que estava escondido ou esquecido.

Como foi o processo de apuração?
Entre apuração e redação, foram três anos e meio. Entrevistamos mais de 50 pessoas diretamente ligadas ao ex-deputado, localizamos documentos, lemos processos judiciais, mergulhamos em reportagens e entrevistas, algumas das décadas de 50 e 60 – para relatar a vida de Elcy Cunha, pai de Eduardo. Foi um trabalho de desenterrar informações, porque o ex-deputado mantinha muito de sua vida nas sombras.

Durante a leitura do livro, percebe-se que Eduardo Cunha esteve, desde o governo Collor, presente na vida política brasileira. A qual característica dele o senhor atribui esse fato?
Todos os entrevistados apontam duas características em Cunha: a ambição e a inteligência. Ele usou as duas para conquistar espaços políticos e montar esquemas de corrupção, como os denunciados pela Procuradoria Geral da República. Muita gente nos pergunta: “Se ele era tão inteligente, como foi pego?” Primeiro, crimes deixam traços. Depois, como disse um entrevistado, amigo de Cunha, mas que pediu para ficar anônimo, inteligência não é sabedoria.

Eduardo Cunha leu o livro?
Sabemos que ele leu, mas não (sabemos) a reação. A informação que temos é que há, sim, um projeto dele para publicar suas memórias. Ele teria parado durante um período, quando se concentrou em analisar processos aos quais respondia. É bem possível que ele publique algo.

Fonte: O Tempo