Por Luiz Carlos Prestes Filho

Para Bárbara Veloso, o racismo no Brasil é estrutural: “Tem uma estrutura sólida e perversa, que nos exclui e nos desumaniza.” Em entrevista exclusiva para o jornal Tribuna da Imprensa Livre, a roteirista, que faz parte da equipe da série “A Divisão”, um case de sucesso da Globoplay, produzida pelo Afroreggae Audiovisual, afirma que as obras audiovisuais da África não atravessam o oceano, porque não há interesse das curadorias e das distribuidoras: “O continente africano produz filmes de qualidade similares aos que encontramos dentro do nosso mercado.”

Bárbara com o pai, Altay Veloso (arquivo pessoal)

Luiz Carlos Prestes Filho: Como é ser roteirista e militante social?

Bárbara Veloso: Nasci preta num país racista, a minha militância é a de sobreviver dentro de uma estrutura que impede de avançar, em todos os sentidos – sociais e profissionais. Depois de muitos anos, em 2019, consegui entrar no mercado cinematográfico do meu país. Tendo feito a faculdade de cinema em 2002! Manter-se no mercado é outra luta. Não tenho o número exato de roteiristas negras em atividade. Mas não somos mais de 2% de todas e todos roteiristas brasileiros. Além do trabalho criativo, meu trabalho é também chamar a atenção dos colegas para a construção de cenas que nos estigmatizam. Pode ser adoecedor o peso dessa responsabilidade – ser a única preta num espaço de poder e de decisão.

Família Veloso reunida: Saulo, Ébano, Altay, Celia, Izolina e Jhibran (arquivo pessoal)Prestes Filho: Como foi o seu caminho no universo do audiovisual?

Bárbara Veloso: Trabalhei alguns anos realizando projetos para Angola. Foram dois documentários sobre a luta da independência e alguns programas para televisão. Estudei muito, fiz os melhores cursos, mas foi Angola me fez roteirista. Foi lá que aprendi a construir as personagens; a contar uma história; ter a dimensão do poder devastador de uma história mal contada.

Prestes Filho: Quais são as suas principais referências no Brasil de hoje?

Bárbara Veloso: Altay Veloso, Conceição Evaristo, Ana Paula Lisboa, MC Martina, Glenda Nicácio, Juliana Vicente, Gabriel Martins, André Novaes, Sabrina Fidalgo, Marcelo d’ Salete e Flávia Vieira. Existe uma geração de jovens cineastas negras e negros, brilhantes.

Langidila – título do primeiro filme que Bárbara Veloso fez em Angola, que é sobre Deolinda Rodrigues (a primeira mulher do comitê diretor do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA)

Prestes Filho: Quais temas mais atraem a sua atenção?

Bárbara Veloso: Gosto de histórias que são conduzidas por boas personagens, independente do tema. O Gabriel Martins, cineasta mineiro, para mim, é um dos melhores contadores de histórias da atualidade.

Prestes Filho: Como os temas ganham corpo, deixam de ser sinopse e se transformam em roteiros? Quais técnicas você usa?

Bárbara Veloso: Eu aprendi a linguagem cinematográfica nas horas e horas que passei na cinemateca, muito mais do que nas salas de aula. Chegava a assistir cinco filmes por dia na faculdade. As técnicas que aprendi, principalmente as do cinema americano, são ferramentas para contar histórias, mas ao mesmo tempo é preciso abandoná-las. Elas engessam, endurecem a narrativa, inibem a intuição.

(4) Bárbara Veloso e Edyr Duqui, em 2003, filme “Coração de Cebola” (arquivo pessoal)

Prestes Filho: Quais são os projetos do momento?

Bárbara Veloso: Atualmente sou uma das roteiristas da série “A Divisão”, que é um case de sucesso da Globoplay, produzida pelo Afroreggae Audiovisual. Mas, em paralelo, estou escrevendo uma série autoral de ficção sobre mulheres negras e a saúde mental. Espero poder avançar com este último projeto, reunir roteiristas que admiro, para desenvolver coletivamente o mesmo.

Prestes Filho: Os países irmãos da América Latina estão mais avançados no que diz respeito a projetos voltados para a nossa identidade africana?

Bárbara Veloso: Conheço pouco a produção dos nossos vizinhos sobre esse tema importante, o que é uma pena. Mas o Brasil, entre os países da Diáspora Africana, tem produzido documentários, filmes de ficção, livros, estudos acadêmicos sobre a nossa ancestralidade. Recentemente, a jornalista Bela Reis escreveu a tese “Oxum e o Mito da Fragilidade Feminina” que é um primor! Está disponível no Scribd.

Bárbara Veloso e a equipe de roteiristas do “Arcanjo Renegado” – 2ª temporada: José Junior; Gabriel Maria e Gustavo Redemacher (arquivo pessoal)

Prestes Filho: Você acompanha a produção audiovisual de países africanos? Um irmão seu trabalha na TV de Angola. Os produtos daquele país tem qualidade para serem distribuídos no Brasil?

Bárbara Veloso: Quando se compreende que o racismo é estrutural, que este tem uma natureza sólida e perversa que nos exclui, que nos desumaniza, que apaga a nossa história, se compreende porque as obras audiovisuais da África não atravessam o oceano. Não há interesse das curadorias e das distribuidoras. Mas o continente africano produz obras de qualidade, similares as que encontramos no nosso mercado. Abderrahmane Sissako é uma das minhas maiores referências. Estudei com a incrível professora Janaína Oliveira, Doutora em História, estudiosa do cinema africano. Ela foi responsável por apresentar no Brasil os filmes de Mambéry; de Idrissa Ouedraogo; e de Sarah Maldoror. Em Angola, conheci o trabalho de Nguxi dos Santos, cineasta da província do Zaire.

Prestes Filho: No campo da literatura sobre o tema étnico quais são suas referências?

Bárbara Veloso: Paulina Chiziane é a maior referência! Também, Miriam Alves, Esmeralda Ribeiro, Maya Angelou, Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus e Chimamanda.

Prestes Filho: Você reside onde nasceu; casa onde nasceu seu pai, cantor, compositor e músico, Altay Veloso; local onde está o terreiro de sua avó. A identidade deste seu chão inspira?

Bárbara Veloso: Tudo o que me inspira é essa herança. É ela que me forjou, é sobre ela que quero escrever, esta é a força que me alimenta. África me deu tudo: a história, a religião, a minha profissão e esse bronze maravilhoso.


LUIZ CARLOS PRESTES FILHO – Cineasta, formado na antiga União Soviética. Especialista em Economia da Cultura e Desenvolvimento Econômico Local, colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Coordenou estudos sobre a contribuição da Cultura para o PIB do Estado do Rio de Janeiro (2002) e sobre as cadeias produtivas da Economia da Música (2005) e do Carnaval (2009). É autor do livro “O Maior Espetáculo da Terra – 30 anos do Sambódromo” (2015).