Redação

Ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Carlos Ayres Britto criticou o projeto de lei sobre abuso de autoridade aprovado pela Câmara. A matéria aguarda sanção ou veto do presidente Jair Bolsonaro. Para Ayres Britto, há risco de “violação da autonomia” dos juízes.

O ex-ministro, ativo na advocacia aos 76 anos — foi contratado por Aécio Neves (PSDB) para emitir parecer jurídico na campanha de 2014, quase três décadas depois de ser candidato a deputado federal pelo PT —, afirmou ainda que é preciso resguardar a independência do Supremo, bombardeado por críticas de diferentes setores do espectro político.

A lei do abuso de autoridade é um contra-ataque ao Judiciário?
O Judiciário, além de independente, tem autonomia técnica para julgar segundo sua convicção e sua ciência própria. O crime que um magistrado pode praticar é o de responsabilidade, ou uma infração administrativa. Abuso de autoridade, não. A título de imputar o abuso de autoridade a um juiz, o Estado vai terminar por violar sua autonomia técnica. Vai criminalizar o modo como o juiz interpreta o Direito.

Defensores do projeto sustentam que não haverá “crime de hermenêutica”, de interpretação de lei…
Se você relativizar a liberdade de expressão, você absolutiza o poder do Estado. Não há meio-termo: ou você absolutiza o poder do Estado de criminalizar a liberdade técnica do juiz ou absolutiza a autonomia interpretativa do magistrado. “Abuso” se associa a um transbordamento do modo de entender ou aplicar o Direito. Como separar, então, este suposto “abuso” do estabelecimento de uma censura, de uma criminalização de certas interpretações do Direito? É impossível.

É preciso, hoje, haver um pacto entre os Poderes, como proposto pelo presidente do STF, Dias Toffoli?V
Vejo isto com muitas ressalvas. Os Poderes só devem pactuar com a Constituição. Há até um certo compartilhamento de funções entre Executivo e Legislativo, mas o Judiciário não tem nada a ver com isso. Até porque, quando se mete a se familiarizar com os outros Poderes, o Judiciário termina cooptado. Quanto mais os Poderes seguirem a Constituição, menos vão depender um do outro. Que cada qual fique no seu quadrado normativo, e a harmonia será uma resultante.

O inquérito aberto por Toffoli para investigar ofensas à Corte sem o Ministério Público Federal (MPF) é desvio institucional?
Convivi com muitos colegas que permanecem na Corte, como o próprio ministro Dias Toffoli. Se ele acertou ou se errou, prefiro não falar. O que posso dizer é que Toffoli pelo menos tentou, com todo o empenho, satisfazer o inciso IX do artigo 93 da Constituição, que diz que todas as decisões serão públicas e fundamentadas tecnicamente. Sua decisão é incomumente alongada, cheia de justificativas e citações. Mas é verdade que sua interpretação do regimento interno do Supremo suscitou divergências

Esse tipo de iniciativa não tem desgastado a imagem do STF?
Péricles, o estadista grego, já dizia: “Não participo da vida coletiva porque sou livre. Sou livre porque participo da vida coletiva”. Embora nossa democracia tenha apenas 30 anos, ela veio para ficar. E a cidadania no Brasil está robustecida. Aí entramos na linha de Thomas Jefferson: “O preço da liberdade é a eterna vigilância do povo”. O povo está chegando nos calcanhares do Supremo, porque já percebeu que tudo afunila nele. É natural que o Supremo seja mais criticado, desde que também haja o reconhecimento por parte do povo de que ele não pode ser varrido do mapa jamais. O que eu não gosto é de insultos, de incontinência verbal. (fonte: O Globo, por Bernardo Mello)