Por José Carlos de Assis

Tenho sustentado não só o imperativo de uma reconciliação real entre civis e militares por cima das cinzas já desfeitas da chamada revolução de 64 – ou golpe, como a esquerda preferiu durante muito tempo -, mas uma necessidade imperiosa de modernização de nossas estruturas de Estado e de Governo para enfrentar os desafios contemporâneos da necessidade e da política brasileiras. Sou muito pouco ouvido. Sou como a voz que prega no deserto. Contudo, continuarei fazendo isso, confiado na estratégia de Goebbels: Repetir, repetir sempre.

Se essa estratégia infame, a estratégia da mentira, funcionou tão bem na construção da Alemanha nazista, por que não pode funcionar agora, no processo de construção da democracia social brasileira? Sim, porque podemos construir uma democracia social por cima das cinzas do sistema constitucional falido de 88, que nada tem a ver com uma democracia verdadeira mas que se tornou uma âncora de privilégios, de mordomias, de mandatos corporativos e de distorção salarial por dentro e por fora do setor público.

Nosso sistema político está podre porque já não corresponde aos interesses do conjunto da população brasileira. E a podridão vem de cima para baixo. Tenho sustentado que o presidencialismo esgotou-se diante dos desafios contemporâneos para um presidente da República típico, que enfeixe poderes reais do Estado. É curioso, mas não prestam atenção no que digo, não obstante escreva com grande frequência nos principais blogs do país. Ainda se vê o Presidente como investido de todos os poderes, porém fragilizado por impeachments.

É um equívoco esse sistema. Demonstrei, em artigos anteriores, que há somente quatro áreas que deveriam ser reservadas ao futuro Presidente, a saber, guerra, genética, meio ambiente e ciência e tecnologia. São óbvias. Mas não mais que isso. Nessas áreas, as funções presidenciais poderiam ser exercidas em plenitude política, com o auxílio de um Conselho de Estado que o ajudaria a formular políticas e implementá-las. Ao Governo parlamentar seriam reservadas as questões de Economia e de administração pública.

No meu entender, como estudioso em Ciência Política e Economia Política, a separação de funções de Estado presidenciais e funções de Governo resolveria a questão democrática: o futuro presidente, eleito para mandatos longos, teria um processo eleitoral descolado do jogo democrático comum para evitar contaminações demagógicas; já o Governo, ou gabinete, teria, como em qualquer regime parlamentarista, o contato mais imediato com o povo em eleições, com os condicionamentos de um programa de governo formal.

O lado frágil desse sistema seria o papel dos militares: eles poderiam ser tentados a intervir em questões constitucionais, como aconteceu no passado. Contudo, se observarmos de perto o que aconteceu com essas intervenções, veremos que, quase sempre, resultaram de uma fragmentação na cúpula civil do Governo, suscitando intervenção militar. Isso é tanto verdade que uma das soluções do conflito, mal resolvido, de nosso processo histórico foi a fragmentação do poder com Jango e depois Jânio, este com Parlamentarismo improvisado.

Esse é um processo que deve ser resolvido a frio. Tentei fazer isso com um livro de 2008, “A Crise da Globalização”, no qual analisei a crise institucional – a maior até esta atual. Mais uma vez, preguei no deserto. Agora já não há mais tempo para propor grandes formulações a frio. Temos que enfrentar a situações a quente, pois nos defrontamos com a maior crise social, econômica e política de nossa história. Nessa, um Exército pacificado pela influência do coronavírus poderá ter um papel conciliador excepcional na política brasileira.


JOSÉ CARLOS DE ASSIS – Jornalista, economista, escritor, professor de Economia Política e doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/UFRJ, autor de mais de 25 livros sobre Economia Política. Colunista do jornal Tribuna da Imprensa Livre. Foi professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), é pioneiro no jornalismo investigativo brasileiro no período da ditadura militar de 1964. Autor do livro “A Chave do Tesouro, anatomia dos escândalos financeiros no Brasil: 1974/1983”, onde se revela diversos casos de corrupção. Caso Halles, Caso BUC (Banco União Comercial), Caso Econômico, Caso Eletrobrás, Caso UEB/Rio-Sul, Caso Lume, Caso Ipiranga, Caso Aurea, Caso Lutfalla (família de Paulo Maluf, marido de Sylvia Lutfalla Maluf), Caso Abdalla, Caso Atalla, Caso Delfin (Ronald Levinsohn), Caso TAA. Cada caso é um capítulo do livro. Em 1983 o Prêmio Esso de Jornalismo contemplou as reportagens sobre o caso Delfin (BNH favorece a Delfin), do jornalista José Carlos de Assis, na categoria Reportagem, e sobre a Agropecuária Capemi (O Escândalo da Capemi), do jornalista Ayrton Baffa, na categoria Informação Econômica.