Por Lincoln Penna

As eleições de 2022 reservam muitas expectativas no que diz respeito aos desdobramentos do panorama político brasileiro.

Mais do que nas eleições passadas, os olhares do continente e do mundo estarão voltados para o seu desfecho. Tanto ao nível da direção política dos eleitos quanto do tratamento a ser dispensado por estes aos males acumulados ao longo do tempo. Os resultados do processo eleitoral não passarão despercebidos pela opinião pública mundial.

A questão democrática estará como nunca na pauta eleitoral, de uma forma ou de outra. E Ela se fará presente em seus diversos espaços da vida nacional, como na relação dos poderes constituídos e em face de suas funções institucionais, como na maior ou menor acatamento aos direitos individuais e sociais. A própria eleição em si será testada quanto ao grau de legitimidade do seu processo, com a estrita observância às normas visando assegurar que seus resultados não venham a ser arranhados por suspeições levianas.

Temos como povo buscado a realização do paraíso sempre sonhado, emoldurado pela rica diversidade de nossas riquezas naturais, todavia a realidade vivida foi toda ela marcada por sucessivas frustrações. Assim aconteceu com a Independência inconclusa, com a decantada Abolição da escravatura, e com a República que até agora não produziu a cidadania esperada para todos, e das inúmeras vezes em que se buscou transformar a nossa realidade, em vão. Derrotas, concessões e conciliações têm nos levado a buscar respostas a todos os fracassos que puseram fim a nossa libertação como povo e do país como nação soberana.

A busca de nosso tempo perdido produziu boas análises, instigou excelentes elucubrações dos nossos lúcidos intelectuais, mas não nos animou o suficiente a ponto de resultar em projetos conseqüentes para sairmos da sensação de marasmo. Salvo os mais ousados e destemidos, fisgados pela sempre ativa repressão, lograram deixar registrado o destemor da brava gente brasileira. Mas, é preciso nas antevésperas das eleições mais importantes de nossa história política que consigamos criar as condições para que a democracia, como construção histórica, vença o marasmo, a descrença e o reacionarismo travestido como sempre do moralismo farsante.

Temos denominado de democracia civilizatória, a atitude que preza as conquistas da humanidade e as incorpora. Dentre elas a ideia de coexistência das diferenças, sem abrir mão das convicções que cada parte ou pedaço de uma sociedade desigual sustenta em sua leitura e compreensão da realidade. O objetivo de fazer valer essa democracia com base nos avanços civilizatórios consiste em trazer consigo os valores alcançados no passado, preservá-los e ampliá-los.

As muitas sociedades de classes do passado tiveram o mérito de construir o que somos como humanidade, a despeito de métodos violentos para fazer valer interesses que se sobrepuseram a das demais. Ainda assim construíram os bens que levaram a humanidade a patamares mais elevados de bem-estar social, não obstante as desigualdades. Em alguns casos houve recuos, e essas desigualdades se aprofundaram. Situações de afronta aos valores civilizatórios aconteceram e permanecem como o maior desafio dos tempos atuais.

Sedimentados os valores civilizatórios que alcançamos, um deles deve se tornar permanente em qualquer das formas de regimes políticos. Trata-se da liberdade. É o que chamaríamos de princípio ativo da democracia. E não há hegemonia de classes que justifique o cerceamento desse valor. Claro que a liberdade evocada é a que confere a todo o ser humano a capacidade de se expressar. Nada a ver com a liberdade usada para fins privados, comum ocorre aos ideólogos dos regimes que privatizam patrimônios públicos. Geralmente essa liberdade evocada pelos donos do poder se encontra apoiada no fundamento ideológico de modo a conspurcar a democracia e desviá-la do caráter civilizatório que ela contém.

Ao se privilegiar as lutas de classes, como tendo a primazia nos embates políticos, Marx tinha razão. Contudo, devemos nos inspirar no autor da mais importante chave explicativa da história e entender a própria dinâmica dessas lutas. É assim, com certeza, como diria o fundador do marxismo, pois se trata de uma atitude que observa a história como movimento dialético, logo não convém cristalizar os momentos históricos e tomá-los como modelo permanentemente. Tal como os modos de produção, as estruturas orgânicas das classes em oposição às outras também se modificam, sem perder, é verdade, sua essência original.

Por isso, as lutas de classes não desaparecem, mas ganham relevos diferentes a cada realidade concreta.

Manifestação anti-Bolsonaro. (Crédito: Henrique Rodrigues/Revista Fórum)

Do ponto de vista civilizatório essas lutas podem e devem ser muito mais instrumentos de visão de mundo das forças que antevêem os avanços comuns da humanidade de acordo com as suas leituras. Daí, o papel das ideologias no que concerne ao exercício da dominação de classe, razão pela qual Marx afirmara que a ideologia que impera representa sempre a visão das classes dominantes. A generalização da ideologia para as demais classes é uma licença literária e histórica, uma vez que a ideologia é a própria visão de mundo do poder.

No mundo do início da terceira década do século XXI, vive-se um curto circuito, quase apagão, dos valores caros das conquistas civilizatórias. Estas costumam ser ignoradas ou simplesmente erradicadas em alguns casos mais perturbadores. No Brasil do governo da destruição de um presidente transtornado pela obsessão anticomunista, os valores da democracia civilizatória correm risco. E na prática, sua eliminação dependeria apenas de uma única canetada para eliminar o que considera como uma ameaça aos seus propósitos ensandecidos.

Mas, esse personagem do mal não está só em sua empreitada contra a democracia, os agentes da cobiça irracional do mundo representado pelo grande capital são seus parceiros. Agridem os recursos humanos e ambientais colocando em risco o equilíbrio ecológico, para atender a ganância dos que vivem da exploração predatória e da especulação financeira. Essa escalada investe contra os bens civilizatórios e representa uma ameaça indiscutível para a humanidade.

Temos chegado a um grau de consciência dos males que nos atormentam, que não há campanhas cinicamente patrióticas de cunho chauvinistas que nos conduzam como povo a sustentar ações impensadas. Afinal, a humanidade rejeita os atos de agressão em nome de supostos interesses de uma nação, que são na verdade imperativos da cultura da guerra e da cobiça.

O único valor que sustenta a humanidade é a defesa de sua história, das conquistas civilizatórias. Valor este traduzido pelos povos abrigados na comunidade das nações, cuja crescente ampliação pode nos levar à construção da fraternidade universal. Procurar aprisionar o culto da civilização a uma doutrina ou sistema de poder é não entender a compreensão do valor civilizatório. Este consiste numa interpretação fundamentalmente democrática, pois só assim ele honra a Inteligência humana a perseguir sua superação a todo instante.
Na democracia civilizatória é bom pontuar que em sua essência está presente o pressuposto da igualdade, para fazer avançar as conquistas da própria civilização. Esse pressuposto é a inspiração que deve nortear os nossos horizontes, e mais precisamente o das lideranças empenhadas nas disputas inerentes à democracia. Até porque a civilização não tem senão o sentido de pertencimento da espécie humana e, portanto, não é exclusividade de regimes ou governos que se julguem superiores.

Em nossa história contemporânea, o nazismo quis ser o dono do mundo, e não logrou êxito porque seu objetivo contrariava a convivência das diferenças, algo que procuramos buscar ainda, mas com esperanças renovadas. A presença dos preconceitos de toda ordem impedem a concretização desse objetivo maior que é a consagração dos bens conquistados pela humanidade.

Se o Brasil diante de tantas ameaças de retrocesso tem parte de nossa sociedade mergulhada na desesperança, a única alternativa é executar as grandes transformações necessárias. Com isso contamos com a clarividência do protagonista dessas transformações, o nosso povo. Mas, é preciso que ele nos ajude a livrarmos do obscurantismo expresso pelo fascismo repaginado e pelas formas de um imperialismo centrado no interesse exclusivo dos que só visam à acumulação de riquezas.

A encruzilhada que nos espera com as eleições que se avizinham promete lutas intestinas e olhares externos cada vez mais acesos. Eleições ordinárias no que diz respeito ao calendário, mas singulares a desempenhar papel de grande importância diante das crises nos planos econômico, social, político e ambiental.

LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon);  Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.


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NOTA DO EDITOR: Quem conhece o professor Ricardo Cravo Albin, autor do recém lançado “Pandemia e Pandemônio” sabe bem que desde o ano passado ele vêm escrevendo dezenas de textos, todos publicados aqui na coluna, alertando para os riscos da desobediência civil e do insultuoso desprezo de multidões de pessoas a contrariar normas de higiene sanitária apregoadas com veemência por tantas autoridades responsáveis. Sabe também da máxima que apregoa: “entre a economia e uma vida, jamais deveria haver dúvida: a vida, sempre e sempre o ser humano, feito à imagem de Deus” (Daniel Mazola). Crédito: Iluska Lopes/Tribuna da Imprensa Livre.