Por Jeferson Miola –
A Democracia Socialista/DS, tendência interna do Partido dos Trabalhadores/PT, publicou documento sobre a conjuntura nacional e os grandes desafios da candidatura do ex-presidente Lula, do PT e do conjunto da esquerda brasileira [aqui]. O texto aporta elementos centrais para a discussão sobre a estratégia política e eleitoral da esquerda.
Na visão da DS, desde a 1ª eleição disputada pelo PT em 1989, as eleições de outubro de 2022 “são aquelas em que um potencial de vitória política e a construção de uma nova hegemonia estão decididamente mais estabelecidos”.
Esta “janela histórica aberta a uma vitória sobre o neoliberalismo no Brasil comunica-se com uma conjuntura rica de crescimento e vitórias antineoliberais na América Latina e, de forma decisiva, com uma grave crise histórica do neoliberalismo nos EUA”, diz o documento.
Caracterizando Bolsonaro como “o último recurso possível [do establishment] para a aplicação do programa neoliberal no Brasil”, a DS entende que “pretender derrotar o bolsonarismo sem derrotar politicamente as forças econômicas e políticas neoliberais que o elegeram, sustentaram e ainda sustentam é trilhar certeiramente a direção do desastre político”.
Assim como na eleição do Chile que elegeu o candidato da Frente Ampla Gabriel Boric, o confronto decisivo na eleição de outubro próximo no Brasil também será entre neoliberalismo versus antineoliberalismo.
A nitidez programática, a coerência ideológica na formação de alianças partidárias e a capilarização da campanha de Boric no país foram fatores determinantes para a vitória da Frente Ampla no Chile.
Boric captou o “espírito das rebeliões” antineoliberais e o mal-estar da população com as contradições e limites de décadas de padecimento do modelo neoliberal. Ele foi também depositário da esperança contra o risco representado pelo candidato nazista e de ultradireita José Antonio Kast, um homólogo de Bolsonaro – porém, mais instruído e menos torpe.
Com este perfil, a Frente Ampla conseguiu despertar o interesse eleitoral do povo chileno que, por sua vez, correspondeu com a maior participação eleitoral da história para assegurar a maior votação jamais antes obtida por um presidente eleito.
O desenlace do processo de mudança no Chile será definido, evidentemente, no contexto da dinâmica política concreta e do conflito social. É preciso reconhecer, entretanto, que a vitória de Boric, nos termos em que ocorreu, é um ponto de partida potente para materializar tanto a transição das políticas pós-neoliberais do seu governo, como também a transição para uma Constituição republicana, democrática e antineoliberal por meio da Assembleia Constituinte.
Na realidade brasileira, a polarização neoliberalismo vs antineoliberalismo está ainda atravessada por três fatores: [1] o colapso estrondoso do programa ultraliberal executado a partir do golpe de 2016 e aprofundado pelo governo militar, cujo resultado mais notório é a barbárie social e a destruição da soberania nacional; [2] a ameaça de escalada autoritária, militarista, de tutela do poder civil por cúpulas militares conspirativas – o partido dos generais; e [3] o padrão de violência/pistolagem política de uma ultradireita engajada, extremista e armada que não tem compromisso com a democracia.
A analogia do processo da esquerda chilena com os desafios do PT e da esquerda no Brasil é de grande valia. No contexto do absoluto esgotamento da barbárie neoliberal e da necessidade de salvação e reconstrução nacional, é preciso apresentar um programa que responda aos desafios postos desde a perspectiva da maioria do povo brasileiro e da classe trabalhadora.
E é preciso estabelecer, em coerência com tal programa, as alianças partidárias e com setores da sociedade comprometidos com o frontal antagonismo ao neoliberalismo e a suas políticas.
No seu documento, a DS analisa que “Para que este caminho virtuoso seja construído é preciso unir, de forma coerente e articulada, a defesa de um programa antineoliberal, a luta pela construção de um novo senso comum democrático e popular, a construção de uma frente orgânica de esquerda e centro-esquerda e a combinação da luta política eleitoral com um amplo processo de auto-organização nacional e unificado dos movimentos sociais”.
A federação partidária, que “deve se firmar a partir de um compromisso político contra Bolsonaro e o neoliberalismo com o PSOL, o PCdoB, o PSB, a REDE, buscando atrair também as fileiras do PDT” em contradição com Ciro Gomes, visa “a formação de uma bancada orgânica ao programa de governo bastante superior àquela obtida em outros mandatos presidenciais”, afirma o documento.
A sustentação congressual própria, ainda que sem maioria parlamentar, mas com bancada numericamente suficiente para impedir golpes farsescos como o promovido contra Dilma; combinada com mecanismos de democracia participativa, plebiscitária, que fortaleçam o poder de influência e de pressão popular, serão essenciais para a viabilização de políticas nada triviais, que tocam no núcleo dos interesses e privilégios seculares das classes dominantes.
Neste sentido, a DS rechaça “a proposta de fazer um pacto com os neoliberais não-bolsonaristas e com o sistema financeiro”. Essa proposta “apareceu com mais nitidez em artigo do economista e ex-ministro da Fazenda do segundo governo Dilma, Nelson Barbosa, oferecendo de saída uma ‘âncora fiscal’, pensada a partir de uma matriz neoliberal de governança, como garantia e propondo uma união entre a ‘Faria Lima e as ruas’. Ora, é necessário exatamente o contrário”. “Para unir a maioria do Brasil e o ‘povo das ruas’ é necessário e incontornável impor uma derrota histórica e definitiva aos magnatas da Faria Lima!”, sustenta a DS.
Na mesma direção vai a crítica à eventual composição de chapa com Geraldo Alckmin, que inclusive se opõe à revisão da reforma trabalhista, um dos pilares para reconstrução pós-neoliberal do mundo do trabalho. A decisão acerca do cargo de vice do Lula deve ser discutida no interior da federação antineoliberal que eventualmente for constituída, com preferência para a indicação de uma mulher, preferencialmente negra, para vice do Lula.
“Fazer o pacto com o neoliberalismo levará necessariamente a um rebaixamento do programa em pontos fundamentais, introduzirá uma profunda contradição na disputa de valores (como travar a disputa com o neoliberalismo se se alia a ele?), criará uma cisão nas alianças orgânicas necessárias à esquerda, além de atingir em cheio a identidade e protagonismo dos movimentos sociais em luta contra o neoliberalismo”, conclui o texto.
A eleição deste ano no Brasil é a mais importante da história. A esquerda brasileira, francamente favorita a vencê-la já no 1º turno com o ex-presidente Lula, tem diante de si tarefas e responsabilidades extraordinariamente mais complexas e desafiadoras que aquelas enfrentadas nos anos em que ocupou o governo nacional [2003/2016].
Além da clareza sobre tais tarefas e responsabilidades, a esquerda está desafiada a constituir uma ampla unidade partidária e social a partir da construção de um programa de sentido antineoliberal, antirracista, feminista e decolonial.
É no marco deste programa que deve se fazer a discussão sobre o nome para vice do Lula; não através de arranjos incoerentes e contraditórios que deseducam politicamente e desencorajam a adesão de amplas massas à dura e cotidiana tarefa de sustentar o governo de salvação nacional e de reconstrução do país.
JEFERSON MIOLA – Jornalista e colunista, Integrante do Instituto de Debates, Estudos e Alternativas de Porto Alegre (Idea), foi coordenador-executivo do 5º Fórum Social Mundial.
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