Por Cid Benjamin

É verdade que, nos últimos tempos, o mundo parece estar ficando de ponta cabeça.

Israel imita métodos dos nazistas numa prática genocida de extermínio dos palestinos, transformando Gaza numa nova Guernica. E diz que chacina de crianças e bombardeio de hospitais são autodefesa…

A Argentina, que tem um povo politizado e admirável, elege um presidente que promete se consultar por telepatia com seu cachorro morto, para buscar orientações no comando do país.

É de lascar.

Mesmo para nós, brasileiros, que estamos vindo de quatro anos de um mandato de Bolsonaro e seus amigos milicianos…

Enquanto isso, o Rio de Janeiro começa a conhecer dias dignos da África do Sul do apartheid, onde os negros não tinham direitos de cidadania e sequer podiam frequentar as mesmas praias dos brancos.

Diante de ações da polícia, que, nos dias 25 e 26 de novembro, retirou de ônibus 47 adolescentes que se dirigiam a praias da Zona Sul, conduzindo-os a delegacias, a juíza Lysia Maria da Rocha Mesquita, da 1ª Vara da Infância, agiu de forma correta. Proibiu detenção de adolescentes sem flagrante delito e sem acusação específica. Afinal, não pesava nada contra os jovens, salvo, talvez, o fato de serem pobres e, em sua maioria, negros.

A doutora não fez mais do que garantir o direito constitucional de ir e vir dessas pessoas. Algo elementar.

Incrivelmente, porém, tanto o governador Cláudio Castro, como o prefeito Eduardo Paes, protestaram contra a decisão da juíza. Defenderam a discriminação.

O primeiro é um bolsonarista convicto, com pouco mais de duas moléculas de cérebro. Mas o segundo é integrante da “direita que toma banho”, para usar uma expressão cara aos franceses. Os dois usaram argumentos parecidos: a decisão tinha o objetivo de prevenir delitos. Como se pobres fossem, por antecipação, criminosos…

Paes disse: “Se eles (os jovens) estiverem acompanhados dos pais e com documentos, não serão incomodados”. Castro vai na mesma linha: “Quem quiser ir à praia, leve seu documento e vá com seu responsável”.

Maior hipocrisia, impossível.

Os filhos das duas autoridades e seus amigos adolescentes cumprem esses requisitos? Estão sempre acompanhados dos pais e levam documentos de identidade quando vão à praia? As exigências se aplicam a eles?

É preciso que a parcela sadia da sociedade proteste contra essa discriminação inaceitável.

O Rio não pode ser palco de um apartheid.

Com a palavra o Ministério Público e as instâncias do Judiciário.

CID BENJAMIN foi líder estudantil nos movimentos de 1968, participou da resistência armada à ditadura e foi dirigente do Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8). Libertado em troca do embaixador alemão, sequestrado pela guerrilha, passou quase dez anos no exílio. De volta ao Brasil em 1979, foi fundador e dirigente do PT e, depois, participou da criação do PSOL. É jornalista, professor e autor dos livros “Hélio Luz, um xerife de esquerda” (Relume Dumará, 1998), “Gracias a la vida” (José Olympio, 2014) e “Reflexões rebeldes” (José Olympio, 2016). Organizou, ainda, a coletânea “Meio século de 68 – Barricadas, história e política” (Mauad, 2018), juntamente com Felipe Demier.

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