Por Jorge Folena

Encontra-se no aguardo de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal a Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 289, proposta pela Procuradoria Geral da República, que questiona a receptividade, ou não, pela Constituição de 1988, do processamento e julgamento de civis pela Justiça Militar, acusados da prática de crimes militares em tempos de paz.

Sendo assim, tomo a liberdade de retomar o assunto para ampliar o debate a respeito do tema, uma vez que o autoritário desgoverno de Bolsonaro o tempo todo ameaça de enquadrar, no foro militar, os civis que questionam os posicionamentos de militares, a exemplo do que ocorreu na desastrosa atuação do general Eduardo Pazzuelo no Ministério da Saúde, durante a pandemia da Covid-19, ainda que se tratando de cargo de natureza civil na administração pública.

A Justiça Militar tem entre seus órgãos o Superior Tribunal Militar e os Tribunais e Juízes Militares, instituídos por lei para “processar e julgar os crimes militares definidos em lei”. Além disso, a Constituição prevê que a lei irá dispor sobre a organização, o funcionamento e a competência da Justiça Militar.

Vemos, assim, que o constituinte deixou para a legislação infraconstitucional a definição de crime militar e o seu processamento pela Justiça Militar; sendo que, na tradição brasileira, o fórum militar tem sido equivocadamente empregado para o processamento de civis, servindo inclusive como instrumento de perseguição política, e tornou-se comum o emprego das forças militares na repressão dos movimentos populares.

Na verdade, uma Justiça Militar em tempo de paz somente se justificaria, quando muito, para proceder ao julgamento de militares em decorrência de irregularidades cometidas no exercício de suas funções militares, em razão da rigidez da hierarquia e da disciplina da caserna.

Contudo, entendo que os militares, como quaisquer servidores públicos, deveriam ser processados e julgados pela Justiça Comum, sem a influência do viés corporativo e protetivo a que conduzem, quase sempre, os julgamentos pelos próprios pares.

A República, como instituição, tem por fundamentos a igualdade e a transparência. Por isso, não há justificativa para a existência de uma justiça punitiva exclusiva para os militares, aos quais deveria ser dispensado o mesmo tratamento conferido pela lei a qualquer outro servidor público.

Porém, desde o Império, civis vêm sendo julgados e condenados por órgãos militares, como forma de repressão direcionada contra ações contestatórias e de rebelião, especialmente aquelas promovidas por movimentos populares.

Esse comportamento foi intensificado em diversos períodos da República, a começar pela sua fundação, quando se deu a perseguição aos simpatizantes do superado regime monárquico.

O mesmo ocorreu durante os anos da Revolução de Trinta, quando foram empregados inclusive tribunais de exceção, como o Tribunal de Segurança Nacional (TSN), criado em 1935 e formado inicialmente como órgão da Justiça Militar, que serviu para julgar civis incursos na Lei de Segurança Nacional da época, porém com o objetivo primordial de perseguir e condenar comunistas.

Da mesma forma, durante a ditadura de 1964-1985, a partir da edição do Ato Institucional número 02 (AI-2), a Justiça Militar foi empregada para perseguir e condenar civis, usando a acusação de prática de crimes políticos, contra a segurança nacional e a ordem econômica.

Em relação ao estabelecido pela Constituição de 1988, até hoje não foram regulamentados os dispositivos constitucionais acima mencionados, aplicando-se, por recepção, o Código Penal Militar e o Código de Processo Penal Militar, correspondentes, respectivamente, aos Decretos-lei 1.001/1969 e 1.002/1969, oriundos do regime ditatorial de 1964-1985, impostos à época por meio da Junta Militar que governou o Brasil, formada pelos Ministros da Marinha, Exército e Aeronáutica, conforme poderes atribuídos pelo Ato Institucional número 16/1969.

O Código Penal Militar, em seu artigo 9º, inciso III, alínea “d”, considera crime militar, em tempo de paz, “os crimes praticados (…) por civil, contra instituições militares (…) nos seguintes casos: (…) d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou em obediência a determinação legal superior.”

Com efeito, o Supremo Tribunal Federal tem construído a sua jurisprudência para determinar que “a submissão do civil, em tempo de paz, à Justiça Militar é excepcional, que só se legitima quando a conduta delituosa ofender bens jurídicos tipicamente associados às funções das Forças Armadas, delineadas, em linhas gerais, no art. 142 da CF/88 (Constituição de 1988)”. Sendo assim, o STF entende que o civil pode ser responsabilizado por crime militar quando atentar contra as instituições militares.

O absurdo está em que tem sido considerada como instituição militar a pessoa do militar, ainda que esteja atuando com violência e fora de local militar, em serviço de preservação da ordem pública, como observado nas operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que têm sido utilizadas principalmente contra as comunidades pobres das periferias brasileiras.

Militares (Exército do Brasil/Divulgação)

Como decorrência, moradores dessas áreas sob intervenção em operações de Garantia da Lei e da Ordem muitas vezes têm sido presos em flagrante e autuados criminalmente, sob a alegação de prática de desacato e desobediência, por se insurgirem contra ações policiais realizadas pelos militares, sendo processados e julgados na Justiça Militar.

Nesses casos, as condenações impostas aos civis decorrem de que tais delitos são considerados como de natureza militar, conforme entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal, que não acolheu habeas corpus em que se defendia a competência do Juizado Especial Criminal e manteve a competência da Justiça Militar neste tipo de acusação.

Desta forma, temos civis (pobres, negros e favelados) sendo julgados pela Justiça Militar, a partir de acusações formuladas exclusivamente por agentes militares, em processos nos quais, na maioria das vezes, somente o testemunho dos militares é suficiente para a imposição da condenação, como no exemplo a seguir.

“O fato de as testemunhas presenciais se confundirem com os próprios ofendidos não tem o condão de desmerecer, tampouco reduzir o potencial comprobatório de suas declarações. Suas palavras são dotadas de presunção de legitimidade e de legalidade, sendo merecedoras de crédito, inclusive no tocante à incriminação de pessoa envolvida no episódio delitivo”.

Com efeito, é a naturalização do autoritarismo contra a população, para a manutenção de uma indevida e imprópria tutela militar sobre a ordem política civil. É a validação da autorização para que os militares estendam suas condutas para além dos limites dos quarteis, o que é inadmissível numa ordem democrática, na qual deve prevalecer o poder civil.

Tudo isto ocorre porque, superado o regime ditatorial de 1964-1985, a Nova República não teve nem a força nem a sabedoria necessária para livrar-se da tutela dos militares, que persistem em impor-se indevidamente à sociedade civil, pela ameaça de uso da força, desde a fundação da República, em 1889.

Na elaboração da Constituição de 1988, os militares conseguiram manter esse inadequado poder moderador, representado pela Garantia da Lei e da Ordem (artigo 142), e lograram conservar a estrutura da Justiça Militar, que recebeu carta branca para continuar processando e julgando civis, ficando estabelecido na Carta Constitucional, apenas, que fosse feito conforme previsto em lei; porém a nova lei nunca veio, pois a opção foi de recepcionar os decretos-leis do regime ditatorial supostamente encerrado.

Nesse ponto, o constituinte deveria ter ressalvado, no Texto Maior, que os civis não deveriam jamais ser julgados na justiça castrense em tempos de paz, a exemplo do que foi adotado em vários países (Portugal, Argentina, Colômbia e Paraguai) e como recomendado, em 2005, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no “Caso Palmara Irabarne vs. Chile”.

Ou seja, a ordem política iniciada a partir de 1985, materializada juridicamente por meio do processo constituinte de 1987-1988, foi incapaz de superar o persistente “passado não resolvido” do Brasil, ao permitir que os militares seguissem interferindo no destino da política e ao manter o emprego de tribunais militares para continuar a repressão contra os civis.

Ocorre que, se a opção nacional sempre foi pela contradição histórica, a manutenção dessas deturpações vem interferindo em nossas instituições, e de modo cada vez mais destrutivo. Nesse sentido, o governo de Michel Temer, apoiado no parlamento pelo mesmo “centrão” de agora e pressionado pelos militares, aprovou a Lei 13.491/2017, que transferiu para a Justiça Militar os crimes praticados por militares contra civis, inclusive em casos de homicídio, durante as operações de Garantia de Lei e da Ordem (GLO).

Essa alteração permitiu que militares que atuaram nessas ações de GLO no Rio de Janeiro deixassem de ser julgados na justiça comum e fossem julgados pela Justiça militar quando dispararam mais de oitenta tiros, que causaram a morte do músico Evandro Rosa dos Santos e do catador de material reciclável Luciano Macedo, em sete de abril de 2019, no bairro de Deodoro.

Vemos assim a perpetuação dessa indevida “tutela militar” sobre os civis, que é aceita com absurda naturalidade pela sociedade civil, a quem caberia verdadeiramente a função de ditar aos militares as ordens de como proceder na execução de suas tarefas profissionais, entre elas a de garantir a efetiva soberania do país, que, ao longo de mais de cem anos de república, tem sido constantemente ameaçada e violada.

  1. Artigo 122 da Constituição Federal.
  2. Artigo 124 da Constituição Federal.
  3. Artigo 124, § único, da Constituição Federal.
    Souza e Silva (2016) registram que “a partir de 1824, após a polêmica repressão à Confederação do Equador, sem uma definição precisa do foro militar, quando necessário, os Conselhos de Guerra poderiam ser usados na repressão a movimentos populares, punindo também civis. Como tribunal de exceção, a Comissão Militar era um dispositivo acionado para dar ares de julgamento à ação do Estado na repressão a movimentos contestatórios.”
  4. Folena de Oliveira (2016, p. 139): “O Tribunal foi constituído primordialmente como um órgão da Justiça Militar e tinha como objetivo atuar ‘sempre que for decretado o estado de guerra’, como previsto no artigo primeiro da referida lei (Lei 244, de 11/09/1936). Porém, ao referido tribunal foi atribuída também a competência para julgar e processar os civis incursos nos delitos previstos na Lei n. 38, de 1935 (a Lei de Segurança Nacional)”.
  5. STF. Segunda Turma, Habeas Corpus (HC) número 128.414/PB, relator Ministro Teori Zavascki, julgado em 17/05/2016
  6. STM, processos números 0079-37.2011.7.01.0201, 0264-88.2014.7.01.0201, 0170-43.2014.7.01.0201, 0229-31.2014.7.01.0201, 0142-75.2014.7.01.0201, 0229-31.2014.7.01.0201, 0193-37.2014.7.01.0201, 0086-56.2015.7.01.0201, 0108-75.2015.7.01.0201.
  7. STF, Primeira Turma, Habeas Corpus (HC) número 113.128-RJ, relator Ministro Roberto Barroso, julgado em 10/12/2013: “Compete à Justiça Militar processar e julgar civil acusado de desacato e desobediência praticados contra militar das Forças Armadas no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública (art. 9º, III, d, C.P.M).”
  8. STM, processo número 0000264-88.2014.7.01.0201, relator Ministro Gen. Ex. Marco Antônio de Farias.
  9. Folena de Oliveira (2020).
  10. Artigo 124 da Constituição Federal.
  11. Mello (2013): “Tendência que se registra, modernamente, em sistemas normativos estrangeiros, no sentido de extinção (pura e simples) dos tribunais militares em tempo de paz, ou então, da exclusão de civis da jurisdição penal milita: Portugal (Constituição de 1976, art. 213, Quarta Revisão Constitucional de 1997), Argentina (Ley Federal n. 26.394/20080, Colômbia (Constituição de 1991, art. 213), Paraguai (Constituição de 1967, art. 253, c/c Ley 18.650/2010, arts. 27 e 28), v.g.”

Referências bibliográficas:

FOLENA DE OLIVEIRA, Jorge Rubem. (2016). Do conflito ao equilíbrio: política, judiciário e audiências públicas. Rio de Janeiro: Editora Pachamama.
FOLENA DE OLIVEIRA, Jorge Rubem (2018). Memória, golpe e Direitos Humanos no Brasil, Revista Digital do Instituto dos Advogados Brasileiros, n. 39, 10 ago. 2018. Disponível em https://digital.iabnacional.org.br/revista-digital-no-39/memoria-golpe-e-direitos-humanos-no-brasil/ Acesso em 10 de ago. 2021.
FOLENA DE OLIVEIRA, Jorge Rubem. Origens do artigo 142 da Constituição. Revista Justiça & Cidadania, 05 out. 2020. Disponível em https://editorajc.com.br/origens-do-artigo-142-da-constituicao/ Acesso 11 ago 2021.
MELLO, Celso (2013). STF, Segunda Turma, Habeas corpus 110.185/SP.
SOUZA, Adriana Barreto e SILVA, Ângela Maria Domingues da. (2016)
A organização da justiça militar no Brasil: império e república. Revista Estudos históricos. Rio de Janeiro.  vol. 29,  n. 58.  Rio de Janeiro,  Mai-Ago.  2016 Disponível em https://www.scielo.br/pdf/eh/v29n58/0103-2186-eh-29-58-0361.pdf Acesso em 09 de ago. 2021.

JORGE FOLENA – Advogado e Cientista Político; Doutor em Ciência Política, com Pós-Doutorado, Mestre em Direito; Diretor do Instituto dos Advogados Brasileiros e integra a coordenação do Movimento SOS Brasil Soberano/Senge-RJ. É colunista e membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre, dedica-se à análise das relações político-institucionais entre os Poderes Legislativo e Judiciário no Brasil.


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