Por Lincoln Penna

Escrevo essas linhas dias após o episódio da queima da estátua do bandeirante Borba Gato, ocorrido no dia 24 deste mês, no distrito de Santo Amaro, cidade de São Paulo. A estátua foi criada pelo artista Júlio Guerra, inaugurada em 27 de janeiro de 1957 e desde então simbolizou a ação dos bandeirantes como desbravadores.

Pedem minha opinião sobre o ocorrido e o faço porque sou favorável a ressignificação de símbolos, que a partir de uma análise revisionista de nossa história permita entender as razões dessas homenagens. Contudo, afirmo que é justa e legítima toda e qualquer manifestação que denuncie o nosso passado escravocrata e predatório, mesmo através de atos que chocam as autoridades de hoje, zelosas por um tempo a ser preservado e que manifestam aversão ao reexame dos fatos pretéritos.

É bom salientar que o Brasil não foi colonizado. Aqui se instaurou uma feitoria no contexto de uma expansão mercantil. Dessa primeira providência dos ocupantes da terra evoluiu-se para a criação de capitanias hereditárias com o objetivo de tornar permanente a ocupação e exploração do território. Esses donatários deram origem aos latifundiários donos de escravos e de terras improdutivas, símbolo de poder.

Os povos nativos foram paulatinamente expulsos de suas terras e muitos deles subjugados pela força material dos invasores europeus. A resistência heroica à custa de suas vidas fez com que fosse aumentado o comércio de escravos da África.

Assim, nativos e africanos trazidos à força passaram a ser mercadorias para atender à sanha dos exploradores.

Negros no Fundo do Porão é uma obra do pintor alemão Johann Moritz Rugendas, publicada no livro Voyage Pittoresque dans le Brésil (Viagem Pitoresca Através do Brasil), de 1835, que reunia cem litografias produzidas durante as viagens de Rugendas pelo Brasil. A obra retrata a cena do porão de um navio que transportava escravos entre a África e a América, no século XIX. Na pintura, ficam exposta as condições de vida dos negros que foram trazidos como escravos. A pintura escancarou as condições desumanas e insalubres dos negros, sendo apontado, inclusive, como propaganda abolicionista. (Reprodução)

Dessa realidade surgiriam os núcleos da oligarquia, a implantarem o mandonismo local até hoje muito presente no âmbito dos distritos eleitorais, e no controle dos poderes de sua área de dominação. Mandaram na política colonial e pós-colonial e assim permanecem sem que se tenha modificado substancialmente essa realidade. Estruturas de poder que permaneceram presentes até hoje, apenas modernizadas dentro da nova etapa da exploração de um sistema comandado pelo capital.

Dentro dessa realidade histórica a demandar mais e mais áreas territoriais surgiriam os bandeirantes e entre eles figuras como Borba Gato, típico apresador de mercadorias humanas para colocá-las ao serviço dos donos de terras. Desbravador foi o título que recebeu e foi difundido por uma historiografia a exaltar a colonização portuguesa, e tornado símbolo dos grandes proprietários. Assim, esse passado jamais se passou, na medida em que ele permanece praticamente o mesmo no que se refere às classes dominantes que nos governam.

Atos como o que ocorreu no dia 24 de junho deste ano se soma aos que têm sido praticados em várias partes do mundo, principalmente após o assassinado de George Floyd que desencadeou a repulsa fruto de uma indignação travada faz tempo na consciência dos povos submetidos à opressão, a discriminação e a violência cotidiana.

Uma das primeiras estátuas a serem derrubadas nas manifestações do movimento “Black Lives Matter” (“As vidas negras importam”) foi a de Edward Colston, comerciante de escravos do século XVII. Erguido em 1895 no centro de Bristol, no Reino Unido, o monumento de bronze foi jogado ao rio que corta a cidade. (Reprodução)

Existe, entretanto, uma questão que precisa ser abordada. E ela tem provocado polêmicas, o que é bom. Refiro-me ao que fazer da memória histórica? A eliminação de registros ou vestígios de casos repudiados hoje em dia devem ser alvos de destruição? Ou a essas lembranças que procuraram eternizar supostos heróis devem ser reexaminadas? Eu prefiro a opção de se adotar uma política de ressignificação para uma verdadeira revisão crítica do passado.

Discordo daqueles que repudiam as ações que têm sido realizadas mundo a fora, com o intuito de denunciar um passado de intolerância que insiste em estar presente em nossos dias. E digo sim aos que compreendem e aprovam tais atitudes que exteriorizam a revolta diante das homenagens de antepassados a cultuarem pessoas sujeitas ao juízo histórico das atuais gerações pelos seus atos cometidas no passado.

Aqueles que herdaram as dores dos povos nativos e escravizados ao se juntarem aos que sustentam a defesa dos que têm sido massacrados ao longo do tempo, são como devemos ser, contrários aos exploradores mascarados por títulos que receberam dos tempos cujos vestígios não podem ser tolerados como representações de uma nação.

Estátua do bandeirante Manuel de Borba Gato, considerado por muitos como o fundador de Sabará, em Minas Gerais. O monumento fica localizado na entrada do Centro Histórico do município. (Divulgação/Prefeitura de Sabará)

Há quem defenda a criação de museus para os quais deveriam ser reunidos todos os chamados “símbolos” de nossa história, tais como as estátuas e as placas de ruas e vias públicas em geral alusivas a figuras que no passado representaram os escravocratas e genocidas. Outros preferem que essas referências espalhadas em praças e logradouros públicos tenham dizeres a expressarem a leitura que hoje fazemos a respeito dessas condecorações. A justificativa dos que assim pensam consiste na necessária lembrança de uma história cruenta, violenta, sempre tendo como alvo as populações mais vulneráveis.

Manter vivo esses registros, mesmo que tenham tido a intenção de homenageá-los é uma forma de não se apagar da memória histórica personagens e tempos que devem educar a nossa cidadania. E essa premissa se aplica a todos os fatos que tenham acontecido mais recentemente, pois tanto o passado remoto quanto o passado recente registram fatos condenáveis. Na visão do presente.

Basta citar os militares da ditadura, que até hoje resistem a que venha à tona os documentos da repressão.

Brasília, 1964 – Tanque diante do Palácio do Planalto e do Congresso Nacional, durante o Golpe Militar. (Reprodução)

O argumento de que eles não mais existem é no mínimo suspeito, sobretudo partindo de uma corporação que se caracterizou em organizar os seus acervos. Os que instauraram o terror não podem ser ignorados. Ao contrário, devem ser punidos. A destruição nesse caso ofende a memória nacional.

Esconder ou ludibriar a opinião pública é um dano enorme para a democracia e para a República, já que ambas sustentam como princípios fundamentais a transparência e a austeridade no cumprimento do dever junto aos seus cidadãos. Foi com esse intuito de buscar a veracidade dos fatos anos após à transição, no retorno dos civis à vida pública como dirigentes do país, que se instituiu a Comissão Nacional da Verdade. E a grande dificuldade enfrentada consistiu na reação de membros das Forças Armadas contra essas apurações.

Em resumo, e fazendo valer o parágrafo único do artigo primeiro de nossa Constituição, além de termos o direito de eleger os nossos representantes diretamente, todo cidadão tem a faculdade de exercer diretamente o seu direito de se expressar. Os autores do ato da queima da estátua de Borba Gato pretenderam denunciar um passado que teima em se fazer presente entre nós.

Não são vândalos, como têm sido acusados, mas cidadãos que gritam por meio de ações diretas contra a permanência de uma memória dos que oprimiram povos e suas identidades.

Estátua de Borba Gato foi incendiada em protesto. (Redes sociais/Reprodução)

O controle do passado é um ato de poder, razão pela qual as classes dominantes se julgam responsáveis pela preservação de nossa história, certas de que a elas pertencem o futuro. Ledo engano, que só o tempo poderá desfazer, uma vez que o povo instruído de sua história pregressa é capaz de compreender o significado dos cultos indevidos que em seu nome tem sido manifestado.

Por fim, nunca é demais citar a décima primeira das Teses sobre Feuerbach de Karl Marx: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”.

A ressignificação faz parte dessa sentença que busca modificar fundamentalmente os legados que nos têm sido impostos, e não somente refletir sobre eles, uma vez que agride os descendentes que ainda convivem com o peso da intolerância e da opressão, de modo a manchar o renome do país.


LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.


Tribuna recomenda!