Por Lincoln Penna –
Ela tinha nos olhos o valor de um símbolo; e é por isso que os resistentes estavam desesperados: sempre símbolos! Uma rebelião simbólica numa cidade simbólica, apenas as torturas eram verdadeiras. (Jean Paul Sartre, A república do silêncio)
Escrevo na véspera de mais uma data simbólica, o da Proclamação da República. E é preciso que se reflita sobre o que tem sido esse regime para os brasileiros, principalmente para as camadas sociais menos favorecidas entre nós.
Tomo de empréstimo o título de Sartre para me referir a nossa República nesta data de mais um aniversário do dia 15 de Novembro, a registrar os seus 132 anos de existência como um regime político incompleto, indefinido e inacabado, além de não fazer valer seu significado etimológico, para dizer o mínimo.
É evidente que há imensa diferença entre aquela república descrita pelo filósofo francês, em face da presença ostensiva do nazismo a violentar a humanidade, da realidade pela qual estamos a passar em nossa centenária República. Lá, a ausência de liberdade era total, aqui ela falseia a verdade dos fatos. Existe liberdade até para se dizer mentiras em tom oficial.
No entanto, o silêncio mencionado por Sartre expressa não somente a impossibilidade de poder extravasar sentimentos e manifestações livremente, ambas contidas à força pela ostensiva repressão ou pela censura prévia imposta por um regime opressor. Ela também está presente para definir uma sensação de impotência diante do fracasso coletivo de um povo, em um dado momento de sua história.
Com relação à única verdade que escapava dos tempos da besta nazista, as torturas, existe correlação com o que temos vivido, a despeito do retorno do Estado democrático de direito, promulgado pelos constituintes em 1988. Afinal, este Estado não conseguiu livrar as parcelas do povo mais desassistido e, por isso mesmo relegado à margem desses direitos.
Acresce o fato de esse contingente social enfrentar o permanente preconceito e deboche das forças da ordem, que supostamente deveriam ter como finalidade sua proteção.
Assim, a repressão sistemática, forma não menos abrandada de tortura. Ela leva ao desespero e à morte a cada ação marcada sempre pelo despreparo crônico dos servidores armados sob o manto protetor do Estado. Com ela, a truculência de sempre. Esta tem sido uma prática, por sinal traço inequívoco de uma sociedade desigual socialmente e desajustada, mantida por uma classe dominante que tem desprezo pelo povo.
Diante de uma República que não conseguiu republicanizar os seus cidadãos, ou seja, não se preocupou em construir o reino da cidadania – supostamente superior ao dos súditos da monarquia-, da transparência e da austeridade. Princípios estes aplicados no sentido de zelar pelos gastos públicos de modo a favorecer os mais necessitados. Logo, fica difícil comemorar a existência de um regime que ainda não aconteceu, salvo nominalmente. Este regime incluído em nosso calendário comemorativo, por sinal, nada diz ao povo brasileiro. Trata-se de um símbolo. Sempre símbolos!
Silencioso esse povo maltratado, desprezado e entregue à própria sorte demonstra, contudo, uma estóica resistência, a carregar um passado marcado pela crueldade da exploração desde a escravidão oficial, passando pela forma oficiosa de exploração similar a daqueles tempos odiosos, e um presente amargo e sempre sujeito a interdições, e cujo futuro inexiste, pois este só lhe reserva a tragédia da morte anunciada.
Diante de uma sociedade violenta e violentada cotidianamente mais um silêncio foi agregado de forma a impedir à revelação de realidades mascaradas ou escondidas. Trata-se das falsas notícias, já incorporadas ao nosso vocabulário como fake news, manipuladas com vista a manter sob permanente ignorância o povo de modo a impedi-lo de ter acesso às Verdades Secretas, só reveladas em folhetim para distrair o cidadão nas poucas horas de lazer. Lazer?
O caminho para se restabelecer a verdade republicana, mesmo submetida como são esses regimes aos interesses de um sistema capitalista, que por seu turno impede a plenitude democrática, consiste na combinação de três condições, a meu ver, naturalmente. São elas: a tomada de consciência de nossa realidade, principalmente das chamadas classes subalternas; a capacidade de aglutinar os assalariados do mundo do trabalho e de suas formas organizativas; e, a ação mobilizadora que consiga se constituir mediante a formatação de um consenso mínimo voltado para o que fazer. Isto, tendo em vista à superação desse silêncio que a todos constrange e impede o atendimento às necessidades básicas de vida.
Geralmente, o contraponto ao silêncio é o ruído. E este em termos de ação política costuma atender por um nome, derivado do grito dos oprimidos. Seja ele sob a forma de insurgência ou se quiserem pelo batismo mais adequado, o de revolução social. Por sinal, termo que fora usado pela primeira vez no século XIX por um filósofo que jamais se deixou silenciar. Seu nome Karl Marx.
Associar a reflexão à ação em determinados momentos da existência de uma sociedade nacional não é ser afoito. É ser honesto com as ideias que cultivamos e em função das quais expressamos os nossos desejos compartilhados com aqueles que formam a nossa comunidade de destino, isto é, com o povo.
LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (Modecon); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.
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