Por Lincoln Penna

Faço com este texto uma autocrítica analítica.

Refiro-me ao fato de ter deixado de lado a situação da violência que vem se multiplicando nas principais cidades brasileiras. Com isso, e sem querer tenho naturalizado inconscientemente esse panorama que nos agride cotidianamente, e mesmo tendo clareza dessa realidade acabamos por dar mais ênfase aos embates políticos geralmente descolados dessa situação.

Há, contudo, uma componente presente em minhas análises que tem a ver com a incidência dessa escalada violenta. Trata-se da lógica da ganância, da usura, traduzida em termos de uma exploração com vistas à aquisição de bens e valores através de meios ilegais constituindo um mercado alternativo que movimenta um volume não desprezível de recursos de capital.

Tais práticas produzem um controle do comércio de mercadorias legais ou ilegais em determinados territórios, geralmente periféricos, dos grandes centros metropolitanos, criando como já tem sido exaustivamente denunciado um estado paralelo, que não é ignorado pelas autoridades públicas. Daí, a crescente presença das notórias organizações criminosas, milicianas ou aquelas voltadas para o tráfico de drogas, também hoje cobiçado pelos grupos milicianos.

O HOME DA CAPA PRETA, filme brasileiro de 1986, do gênero drama biográfico, dirigido por Sérgio Rezende. Biografia do primeiro notório miliciano do Brasil, o ex-deputado Tenório Cavalcanti (José Wilker) polêmico e reacionário político da Baixada Fluminense dos anos 50 e 60 que dominava o município fluminense de Duque de Caxias. (Divulgação)

O fator mobilizador dessas práticas delituosas não está nas várias explicações que costumam ser apresentadas na mídia, muito embora algumas delas mereçam ser levadas em conta. Porém, não focam o fundamental, que é a origem dessa situação. Refiro-me à lógica acumulativa própria do capitalismo, que ao mesmo tempo produz a exclusão social criando os quadros de operadores dessas organizações criminosas, algumas delas contando com a conivência ou omissão de servidores públicos corrompidos por essa mesma lógica. Esta é a razão pela qual cresce essa situação, sobretudo numa economia igualmente periférica de um sistema do capital mundializado.

A solução radical para remover essa lógica é uma árdua e longa conscientização não apenas dos que se encarregam de uma política de segurança permanente e de estado a ser cumprida – tal qual é preciso fazer com a Constituição -, pelos eventuais governos independentemente de suas orientações políticas e ideológicas. Até porque essa lógica do capital, que pode dar sustentação às concepções políticas de grupos extremistas de direita, não será automaticamente contemplada pelas correntes conservadoras, que embora reativas às inovações estão coesas na defesa dos valores humanitários.

Mas, também, cabe estimular a consciência nacional e popular para entender que a questão social reivindicada pelas mentes e corações mais afeitas aos interesses do povo compreenda que se trata de uma luta de esclarecimento, erradicando a ignorância como desconhecimento, logo um combate em nome da implantação de uma consciência democrática e civilizatória.

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As soluções de curto prazo infelizmente passam pela denúncia dessa perversa lógica que é assimilada até mesmo pelos que têm uma visão de mundo mais arejada e solidária, porque a sua perversidade se encontra exatamente na matriz que embala as nossas vidas, sempre em busca do ter mais bens materiais do que do ser mais conscientes de pertencer a uma comunidade afetiva, solidária e criativa.

Comunidade capaz de gerar uma forma de riqueza muito mais proveitosa e justa para todos os seres humanos de uma Terra que precisa tanto dessa comunhão para o enfrentamento de um desequilíbrio também crescente e provocado pela presença dessa lógica. Chamem-na de ideologia, mas esta nada mais é do que a expressão justificadora de uma dominação centrada nessa lógica, porque toda a ideologia advém da ideologia das classes dominantes, senhoras dos mecanismos do capitalismo que inferna como modo de vida a sociedade em todos os níveis e em todas as nações.

A identificação dessa lógica, origem da violência no mundo, e representada em vários episódios que presentemente afetam a paz mundial, não é uma opção derivativa. Representa uma pronta atitude de cidadania em condições de mobilizar as forças sociais internacionais, nacionais, regionais, de maneira a impedir que tenhamos uma espiral ainda mais agressiva a impedir que possamos caminhar para a conquista do reino que a todos seduz, o reino da felicidade e da fraternidade mundial, sem o que estaremos condenados à extinção senão física ´pelo menos moralmente destruidora de nossa capacidade de gerir os novos tempos, sem a presença poderosa dessa lógica da perversidade a nos impor esse terrível quadro de devastação em lares atingidos pela violência sem limites.

Por fim, cabe acentuar que a política de repressão sistemática nas comunidades vulneráveis, de onde se recrutam os soldados que atuam nessas organizações criminosas, além é claro do enorme contingente de aprisionados em nossos cárceres, não resultam senão em mortes, muitas delas a atingir indivíduos apenas porque são moradoras dessas comunidades estrategicamente ocupadas pelos criminosos. O resultado dessa política se traduz de forma que pode parecer exagerada, porém é verdadeira, uma vez que na prática o que acontece é a faxina social, que se não é deliberadamente promovida pelas autoridades é assim que essas ações produzem, lamentavelmente.

Um discurso de ordem violenta, o descontrole de armas e de instituições: esses são alguns dos elementos que, para o jornalista Bruno Paes Manso, autor de “A república das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro” (2020), aproximam o bolsonarismo do sistema de milícias carioca. (Reprodução)

Uma política cidadã a ser orientada para as ações das forças de segurança não tem sido aplicada na formação e treinamento dos agentes policiais, pelo menos aparentemente. Agem, muitas das vezes ou despreparados para os confrontos aos quais são instados a enfrentar, ou por mera tibieza diante das situações de enfrentamentos com agrupamentos fortemente armados.

Seja como for, é preciso enquanto não se muda essa orientação política da segurança pública, a adoção de um protocolo rigidamente centrado na defesa da vida, não importa que vida esteja em perigo. Este é um pressuposto da democracia quando praticada nessas condições entre o estado e os que promovem uma confrontação que venha a ameaçar a normalidade de um estado democrático de direito.

Preservação da vida, eis o fundamento que deve reduzir tanto quanto possível os malefícios dessa lógica que agride objetivamente o curso das práticas democráticas tão necessárias para toda a humanidade.

LINCOLN DE ABREU PENNA – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP); Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON);  Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos); Colunista e Membro do Conselho Consultivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre.

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