Redação

Os murmúrios se adensam, a respiração mundial acelera, mas ninguém ousa se fazer ouvir a plenos pulmões. Até porque ainda é cedo — falta uma eternidade de 8 dias até o 3 de novembro. A insensatez arrogante que levou o Partido Democrata e Hillary Clinton à implosão em 2016 ainda sangra. Melhor represar o otimismo e concluir o aprendizado de como não menosprezar o poder feroz de Donald Trump.

Após o debate de quinta-feira, é razoável achar que o presidente dos EUA perdeu uma grande chance de ressurgir competitivo. Em seu derradeiro confronto ao vivo e na veia com o adversário, Trump pode ter desperdiçado a última oportunidade para mudar a dinâmica eleitoral em curso. Como se sabe, os números têm sido francamente favoráveis a Joe Biden.

PESQUISAS VALEM POUCO – Mas, como também se sabe, as pesquisas eleitorais que dão uma vantagem nacional de 8% a 12% ao candidato democrata valem pouco no labiríntico sistema eleitoral indireto do país. Se três ou quatro dos 50 estados americanos não votarem democrata (os “estados-pêndulos”), Donald Trump não arreda pé da Casa Branca.

Não existe superlativo capaz de traduzir tudo o que está em jogo neste 3 de novembro de 2020. Tampouco é exagerado falar em consequências planetárias para a democracia, o progresso, a solidariedade de gerações futuras. Levando em conta o peso mastodôntico dos Estados Unidos no mundo, o resto da aldeia global será afetada pelo resultado, inclusive na sua essência mais elementar — a humanidade.

Vale relembrar a pergunta final dirigida aos dois candidatos pela moderadora Kirsten Welker (que deu uma sólida master class em jornalismo na condução do debate). A pergunta era previsível, e ambos tiveram tempo de sobra para ensaiar a resposta que melhor espelhasse seu DNA. E assim foi. Trump nada tem a dizer a quem não o segue. Foi estreito, tribal, ominoso em sua busca perpétua por “sucesso”. Biden foi Biden:

MEDIADORA: “No seu discurso de posse, o que o senhor gostaria de dizer àqueles que não lhe deram o voto?”.

Trump: “Precisamos fazer nosso país voltar a ter o mesmo sucesso total que tinha antes da praga vinda da China”.

Biden: “Sou presidente dos Estados Unidos, não de estados vermelhos (republicanos) ou azuis (democratas). Represento todos vocês, tenham votado a favor ou contra mim. Vou lhes dar esperança. Vamos dar preferência à ciência sobre a ficção, à esperança sobre o medo”.

Como escreveu a autora Zadie Smith em ensaio sobre otimismo e desesperança, o progresso humano nunca é permanente, estará sempre sob ameaça e, para sobreviver, precisa ser constantemente reimaginado, reafirmado, reforçado. Biden parece saber que a esperança lúcida é uma forma de resistência contra os desvios da democracia. Já Trump nunca entendeu que a timeline do progresso humano não começa nem termina na sua timeline pessoal, cujo único norte é o “sucesso”.

DESPREZO POR CARTER – Dias atrás o jornalista do New York Times Mark Leibovich relembrou um episódio que testemunhou em 2015, quando Trump arrombou com estrondo a disputa pela Casa Branca. Afundado na limusine que o transportava pelas ruas de Nova York, o magnata-celebridade pôs-se a falar do desprezo que sentia por Jimmy Carter. O motivo do desdém pelo ex-presidente democrata de um só mandato (1979 a 1981) não era o fato de Carter ter sido escorraçado nas urnas por Ronald Reagan.

“Carter tinha a mania de embarcar no avião presidencial carregando a própria bagagem. Não quero um presidente que desembarca carregando seu saco de cuecas sujas”, explicou. No seu entender, isso transmitia uma mensagem péssima, cabendo a um comandante em chefe ser mais imperial, superior, jamais se comportar como um servidor qualquer.

IRONIA HISTÓRICA – Há uma ironia embutida no episódio. A se confirmarem as pesquisas atuais, o mesmo Trump que conseguiu transformar a Casa Branca num palácio de dourados ofuscantes corre o risco de ser defenestrado após um só mandato, como Carter. E, se assim for, de uma coisa pode-se ter certeza: não há a mais remota chance de o 45º presidente vir a evoluir como espécime humano a ponto de se tornar um ex de hombridade semelhante à do “carregador de cuecas”. Aos 98 anos, o cidadão Jimmy Carter é atuante e produtivo na vida cívica, respeitado dentro e fora de seu país.

Mas e se as pesquisas estiverem fora de prumo? Segundo estudo da Associação Americana de Psicologia, mais de dois terços da população adulta dos Estados Unidos descreve a eleição de novembro como “forte motivo de ansiedade em suas vidas” — muito além, portanto, dos 63 milhões que instalaram Donald Trump na Casa Branca. À Covid-19 veio se juntar a Angst-2020.


Fonte: O Globo, por Dorrit Harazim