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A morte e a morte do Direito (assassinado pelo STF) – por Rodrigo de Lacerda Carelli
Justiça, Opinião, Política

A morte e a morte do Direito (assassinado pelo STF) – por Rodrigo de Lacerda Carelli

Por Rodrigo de Lacerda Carelli

Decisões do Supremo que subvertem o princípio da primazia da realidade matam duplamente o Direito.

Em sua pequena obra-prima A morte e a morte de Quincas Berro D’Água, Jorge Amado conta a história de Quincas, que certo dia vem a morrer de causas naturais, mas magicamente recebe uma sobrevida, carregado de seu velório por seus amigos dentro de seu próprio caixão para um passeio e, ao fim da aventura, morrer no mar.

A vida imita a arte: o Direito, em especial o Direito do Trabalho, vem tendo duas mortes no Supremo Tribunal Federal. Essa dupla morte pode ser ilustrada pela recente decisão do STF na Reclamação 66.843, na qual a violência institucional que vem sofrendo a Justiça do Trabalho alcançou o mais alto patamar até agora.

Nessa Reclamação, o ministro Alexandre de Moraes, em decisão monocrática, derrubou acórdão do Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro, que havia mantido condenação de escritório de advocacia em ação civil pública do Ministério Público do Trabalho a se abster de “admitir advogado ou associado, quando presentes os pressupostos constantes dos artigos 2º e 3º da CLT”.

Ou seja, foi determinado que o escritório não se utilize de um contrato civil para fraudar ou impedir a aplicação do Direito do Trabalho, como manda o art. 9º da CLT e indica a Recomendação 198 da OIT. Determinou que quando na realidade se verifique a condição de empregado, que essa situação seja reconhecida pelo empregador, em simples e direta aplicação do princípio da primazia da realidade, utilizado em todo o mundo.

A primeira morte do Direito decorrente dessa decisão não tem muita novidade. Ela é apenas mais uma de uma série de decisões da Suprema Corte cujo condão (e desconfiam alguns que seja também o objetivo) é a destruição do Direito do Trabalho e dos direitos fundamentais previstos na Constituição. Moraes, por meio de argumentos como sempre contraditórios, baseado em decisões do STF com baixa ou nenhuma aderência ao caso julgado, decidiu que a Justiça do Trabalho, “ao considerar ilícita a contratação de advogados de forma associativa, por meio de contrato de prestação de serviços jurídicos, desconsidera as conclusões do Supremo Tribunal Federal”, que garantem a possibilidade de contratações alternativas de trabalho humano.

O que Moraes disse que a Justiça do Trabalho decidiu não foi o que a Justiça do Trabalho efetivamente decidiu neste caso. A decisão trabalhista foi clara: buscou impedir a utilização de contratos, em tese legais, somente nos casos em que presentes na realidade os requisitos da relação de emprego.

Assim, não são relações diferentes as que são impedidas pela Justiça do Trabalho, mas sim o mascaramento de velhos hábitos com roupa nova, colorida e cintilante. Retirado o véu, ou as miçangas, tintas e panos esvoaçantes, poderá estar ali escondida a relação de emprego de sempre. Os contratos que seguem, em sua forma e conteúdo, os fins pelos quais foram criados e que os diferenciam do contrato de emprego continuariam intocados pela Justiça do Trabalho.

Essa seria uma morte natural do Direito do Trabalho, substituído por relações mais eventuais e com maior autonomia, como salienta expressamente parte da decisão. Só que não. O processo em questão eu conheço muito bem, pois fui eu que investiguei o escritório em inquérito civil e sou o autor da ação civil pública.

Foram ouvidos no inquérito mais de dez trabalhadores, além do próprio escritório empregador. Trata-se de um escritório de contencioso de massa, com atuação nos maiores estados brasileiros, sendo que só no Rio de Janeiro mantinha 40 advogados na condição de “associados”.

Em geral, eis o quadro fático: os trabalhadores recebiam remuneração fixa entre R$ 1.600 a R$ 2.000 mensais, cumpriam horário de 9 às 18h ou das 10h às 19h, mas realizavam sempre horas extraordinárias não pagas. Tinham em geral uma hora de almoço, levavam sua própria marmita e comiam no refeitório do escritório.

Tinham chefe que controlava horário e qualidade do trabalho. Precisavam apresentar atestado caso faltassem ao trabalho e atrasos deveriam ser justificados.

Alguns foram dispensados pelo escritório. Outros informaram que recebiam 13º salário sem recibo. Tiravam férias, sem o terço constitucional. Nunca levaram nenhum cliente para o escritório e não recebiam nenhuma participação nos processos que atuavam. Os trabalhadores eram ameaçados de que se entrassem na Justiça do Trabalho em face do escritório nunca mais conseguiriam trabalho em outros escritórios.

Essa é a nova moderna forma de trabalho desenhada pelo STF: idêntica em sua essência à qualquer outra relação de emprego, sem qualquer eventualidade ou autonomia na realidade, mas com as empresas escudadas por um contrato civil formal que impede a fruição de direitos, inclusive fundamentais, pelos trabalhadores. Que modernidade!

Mais uma vez há de se deixar claro: a decisão de Moraes, na sequência de outras da Suprema Corte, no fundo permite que qualquer arranjo contratual formal prevaleça sobre a realidade. Um mundo de faz de conta contratual com o único objetivo de extirpar direitos dos trabalhadores.

Se isso vier a prevalecer de forma geral e vinculante, o Brasil será o primeiro mercado de trabalho com essa regra em todo o mundo, com a agravante de ter sido um modelo imposto por uma corte leiga em matéria trabalhista, ao arrepio dos poderes legislativos e em agressão frontal à Constituição e seus direitos fundamentais, bem como aos tratados de direitos humanos assinados pelo país, como afirmam mais de 650 acadêmicos de mais de 40 países do mundo. O Direito terá morrido, pois terá sido constituída toda uma nova regulação por discricionariedade judicial da Suprema Corte. O Direito terá morrido, pois todo um ramo será extirpado por canetadas judiciais supremas.

A segunda morte do Direito também não tem nada de natural. Em uma inovação frente às decisões anteriores, Moraes julgou “IMPROCEDENTE a ação civil pública”(sic). As decisões anteriores do STF cassaram as decisões, determinando aos órgãos inferiores a sua substituição por outras que respeitassem as decisões da Suprema Corte. É bem verdade que, em escalada anterior, algumas decisões, inclusive da lavra de Moraes, determinavam o julgamento das ações pela Justiça Comum.

Agora não: nem Justiça do Trabalho, nem Justiça Comum, a nova super vara do trabalho que julgará o mérito das ações são os ministros do Supremo Tribunal Federal. E se apresenta como uma instância única mais do que poderosa, que analisará a questão sem realizar qualquer ponderação sobre os pedidos e causa de pedir trazidos na inicial, não se importará muito com a contestação, não fará cotejo ou mesmo análise de provas, mas, como um supremo (e divino) juiz trabalhista, julgará a ação improcedente (sic).

É de se salientar que a Suprema Vara tem entre seus superpoderes abismável rapidez: o processo foi julgado em um dia! Protocolada a ação às 16h23 de uma segunda-feira, distribuída ao relator na terça-feira, e no mesmo dia foi julgada. Que vara rápida: só precisa de algumas horas para a leitura dinâmica, análise e redação de uma ação civil pública.

Uma Super Vara com supremos poderes, que se sobrepõem não só ao Direito do Trabalho, como já vimos acontecer tantas outras vezes, mas que agora fazem letra morta dos princípios constitucionais do processo previstos no art. 5º. Sim, não há que se falar em contraditório ou ampla defesa nas Super Varas trabalhistas do STF: a decisão se dá após a leitura pelo ministro da peça inicial da Reclamação, sem pedido de informações à Justiça do Trabalho e sem ouvir a palavra e argumentos da parte contrária. Não há espaço para contestação.

Também não há direito a recursos. Julgou-se improcedente a ação (sic) e pronto. Publicou-se no diário oficial, não foi preciso intimar pessoalmente o Ministério Público, como manda a lei. Ora, a lei, quem é ela na fila do pão do STF? Como ousar discordar ou mesmo recorrer de uma decisão da Suprema Vara do Trabalho? O ato falho da decisão de Alexandre de Moraes, disfarçado de falta de técnica processual, ao julgar improcedente a ação e não os pedidos, demonstra que a intenção pode ser mesmo a de exterminar o direito de ação. É uma segunda morte, talvez bem pior do que a primeira.

O Direito vem sofrendo suas duas mortes pela ideologia cega do Supremo Tribunal Federal, com um ativismo liberal extremista, inconsequente e sem lastro em nossa Constituição. Nessa implantação ideológica de um ultraliberalismo sem par no mundo, não há mais o direito material, não há mais garantias processuais, não há mais direito de ação autônomo para os trabalhadores e seus representantes funcionais como os sindicatos e o Ministério Público do Trabalho.

Não há mais Justiça para os trabalhadores, é essa, infelizmente, a sequência lógica à qual se induz. A Suprema Corte, tão importante nos últimos tempos para evitar golpes antidemocráticos, está ela mesma introduzindo um rasgo profundo que draga todas as outras dimensões da democracia, o que pode fazer com que, de democracia mesmo, só permaneça a casca.

RODRIGO DE LACERDA CARELLI – Procurador do Trabalho no Rio de Janeiro, professor de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho na UFRJ e integrante do Coletivo Transforma MP.

Publicado inicialmente no JOTA. Envie seu texto para mazola@tribunadaimprensalivre.com ou siro.darlan@tribunadaimprensalivre.com


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