Por Denival Francisco da Silva

Recentemente ocorreu um fato de violência policial em Goiânia que ganhou repercussão midiática local e em todo Brasil.

Um advogado, ao deparar-se com uma cena de violência policial em face a um indivíduo em situação de rua, resolve interceder. Ao invés de conseguir conter a agressão dos agentes fardados, passou a ser também agredido e espancado, sendo algemado e colocado na viatura policial depois de quase ser estrangulado.

Como as cenas ganharam espaço na mídia e ali tinha um advogado como segundo vitimado dessa violência policial, houve um verdadeiro rebuliço por parte do OAB que logo se postou em solidariedade ao advogado agredido, exigindo imediatas providências do poder político estadual para punir os agressores.

Bem, o curioso é que a mesma OAB não lançou uma só manifestação em face à pessoa que primeiro estava sendo agredida, em favor da qual intercedeu o advogado.

O que se reconhece aqui é que a violência policial sofrida pelo advogado é resultante da omissão da sociedade e das instituições quanto a truculência policial no dia a dia, cujos fatos não são evidenciados pela grande mídia por não ter, ao que parece, um personagem vitimado que “mereça respeito e proteção”.

A própria OAB é omissa e silente quanto aos fatos hodiernos que chegam as esferas judiciais. Quanta vezes, como juiz, vi advogados contendo seus constituintes para que não delatassem as agressões que sofreram, isso mesmo depois da instituição da audiência de custódia, como um acordo de conivência ou de submissão à situação de violações de Direitos Fundamentais do indivíduo.

Nestas situações, por dever de ofício, sempre intercedi com firmeza e busquei assegurar ao vitimado o pleno direito de descrever o ocorrido e, diante da narrativa, tomar as providências que me incumbia, com os encaminhamentos aos órgãos correcionais e investigativos.

O fato é que o Estado policial caminha a passos largos, numa escalada punitivista sem igual, diante da passividade de instituições, agentes públicos e políticos que deveriam, num ambiente democrático, tomar imediatas providências para contenção.

Embora caiba ao Estado a reserva de punição, não pode exercê-la sem que sejam assegurados os Direitos e Garantias Fundamentais de todo e qualquer indivíduo, indistintamente. Vale lembrar que o poder punitivo é sempre limitado e excepcional, não podendo ser instrumento de arbítrio e opressão.

Daí que existe uma estrutura burocrática organizada num sistema imbricado de diversos órgãos, com suas atribuições e competências. Nessa teia de agências, agentes e procedimentos, a polícia é a ponta de lança da estrutura, como instituição colocada à frente na prevenção e contenção dos conflitos (tarefas específicas das polícias militares) e no exercício da tarefa investigativa (atribuição da polícia civil) para servir de base ao titular da ação penal que então apresentará uma acusação em juízo.

Apesar de uma nova ordem democrática, com a Constituição de 1988, preservou-se a formatação da instituição policial em carreiras militares, uma das heranças malditas do regime ditatorial que o regime democrático não conseguiu ainda dissipar.  Essa preservação não é obra do acaso ou sem nenhuma importância. Pela redação do art. 144, § 6º da Constituição Federal a polícia militar nos Estados e o corpo de bombeiros militar (?!?!) são forças auxiliares e reserva do Exército. No fundo, como sustenta Jorge Zaverucha, deu-se um verniz democrático aos amplos poderes conferidos às forças militares, aqui somadas com as polícias e bombeiros militares.

Não só a estrutura policial foi migrada do regime de exceção, como trouxe a experiência da truculência e do modus operandi, com o escudo de que a sociedade pede e exige “eficiência”. Os treinamentos dados aos policiais militares são direcionados para lida com situações de guerra e de combate ao inimigo, embora suas atribuições restrinjam-se a prestar serviços no território nacional e lidar com nacionais, ou com estrangeiros que aqui estão sem pretensões belicosas.

O discurso de ódio que permeia a sociedade brasileira, mormente pela expressão punitiva reproduzida e criada na mídia, potencializou em muito o poder entregue à polícia que vê nessas manifestações cobrança e autorização para que exerça com todo rigor seu papel.

A farda, o distintivo, os equipamentos policiais em especial o armamento, a entrega de soluções de problemas que não são efetivos de suas alçadas, e principalmente os resquícios de um período recente não democrático, acabou por entregar indiretamente às instituições policiais um poder que realmente não dispõem.

A própria resistência que trava o debate para o necessário enxugamento da estrutura policial, como a proposta de extinção da polícia militarizada é fruto e um autoritarismo com o qual poucos ousam provocar.

E é justo por essa soberba de poder que muitos de seus agentes extrapolam os limites conferidos constitucionalmente, julgando-se acima do bem e do mal para dar solução antidemocrática aos conflitos urbanos, atuando como legítimos justiceiros. Não sem motivos a exposição de policiais, depois de uma “operação” vir a público dizer que cumpriu seu papel, afirmando que o problema está nos órgãos subsequentes, em destaque no poder Judiciário que irá colocar em liberdade àqueles que foram detidos.

Aqui cabe um parêntesis para destacar o emprego do termo “operação”. Embora não esteja descrito na legislação (ao menos na concepção que lhe é dada no linguajar policial, para a qual se tem inclusive o ritual de batismo para atribuir-lhe nome), não se fala mais em investigação. A polícia tornou-se “operadora” (daquele que diz executar uma operação) e não mais aparelho de Estado para investigação criminal. Na verdade, a expressão “operação” (que até pouco tempo era utilizada para exercícios de matemática ou para intervenções médicas cirúrgicas, não sei inclusive se acertadamente) passou a ser um jargão utilizado por conta do apelo e sonoridade midiática. Quanto mais complexo e atraente for o assunto, como que um enredo de telenovela apresentado em pílulas diárias, melhor para a própria polícia, sempre em evidência, e aos meios de comunicação que terá carnificina garantida para seus telejornais.

Veja que o pacto que se estabelece entre estas instâncias é de perpetuação de favores, inclusive para se autolegitimarem como se fossem poderes da República.

Essa conivência espúria permite a farsa de supostos furos jornalísticos com exposição de provas sigilosas e revelações de fatos ainda em início de investigação, enquanto os próprios investigados sequer têm conhecimento de que são alvos de uma apuração policial. Ao terem conhecimento, seus nomes já foram abusivamente expostos na mídia, com a presunção de culpa estabelecida, diversamente do princípio constitucional que assegura a presunção de inocência antes de sentença condenatória definitiva.

Essa tática matreira de invocar o cumprimento do papel, chamando a mídia para enaltecer a atuação policial, tem o fim de, primeiramente encobrir eventuais excessos das ações policiais, ao afirmar que fez o que haveria de ser feito. Num segundo momento criar elementos incriminadores, com o recolhimento de indícios e supostas provas pelos encartes noticiosos antes provocados. Depois, tem o fim de instituir situações de desgastes, de prejuízos morais e, principalmente, serve para trazer sacrifícios políticos aos investigados e àqueles que os rodeiam. Produzidos todos estes estragos, muitos deles em virtude das investigações más conduzidas, com precipitações na forma de suas apurações, com sobreposições de direitos fundamentais dos investigados em desobediência ao princípio do devido processo, torna-se fácil transferir a responsabilidade pelo insucesso do sistema punitivo a outras instâncias de decisões, enquanto atraem para si a opinião pública.

Ademais, diversas outras condutas policiais são tipicamente criminosas, e aqueles que se dispõe a cometê-las utilizam o nome do Estado, como se estivessem autorizados para este fim. São os casos de atos de truculência policial, com agressões a populares, intimidações e corrupção, torturas e mortes. Tudo isso é feito nas escuridões dos becos das populações mais pobres, ou mesmo na penumbra de movimentos de rua e manifestações populares. Nem sempre os fatos são ocultados e a evidência vem a tona, para o repúdio e falsa surpresa de todos, até mesmo da mídia ávida por cenas hollywoodianas para suas imagens do dia e manchetes de capa.

Ainda assim isso é apenas um pequeno nicho do acervo de truculências e arbitrariedades cometidas no dia a dia pela polícia, com a qual a sociedade não pode ser conivente.

No que tange a OAB e outras instituições, enquanto seus olhares forem meramente corporativos, estarão rendendo loas a este modelo de Estado punitivo, não obstante as severas ofensas aos princípios democráticos.

DENIVAL FRANCISCO DA SILVA é doutor em Ciências Jurídicas pela UNIVALI/SC. Mestre em Direito pela UFPE. Juiz de Direito da Comarca de Goiânia. Membro da AJD.

A coluna ‘Tribuna dos Juízes Democratas’, dos juízes e juízas da AJD, é associada às colunas ‘Avesso do Direito’ do jornal Brasil de Fato e ‘Clausula Pétrea’ do site Justificando. (Fonte: Justificando)


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