Por Sebastião Nery

Na frente, um árabe com seu turbante. Atrás, um africano com seu camisolão. No meio, eu e minha namorada, com nosso medo. Impossível não ter medo. Os aeroportos internacionais da Europa tinham virado campos humanos minados. Todo mundo desconfiava de todo mundo. Sobretudo voos em direção ao Oriente. Cada um ficava imaginando onde o outro tinha escondido a bomba, a granada, o revólver que daí a pouco explodiria lá no céu, o avião e todos juntos. Estávamos no aeroporto de Roma, para pegar o voo da Alitalia para a Grécia. Na fila ao lado, para Damasco, na Síria, homens com turbantes, barba cerrada e cara fechada, mulheres de longos vestidos negros e negros véus na cabeça. A fila deles começava a andar, todos ficavam olhando, calados. O pensamento coletivo boiava indisfarçado, no ar. Quantos iranianos havia ali? E se um fosse terrorista? A centopeia do medo vai andando devagar, seguindo desaparece. Agora é nossa vez. O policial do controle pegou o passaporte do árabe do turbante que estava a nossa frente, olha, esmiúça, confere, visivelmente, constrangedoramente desconfiado. Vai ao computador, dedilha, espera, nada consta, deixa passar. Os nossos passaportes ele mal olhou. Pergunta: – “Brasile”? E carimba. O africano do camisolão, atrás de nós, empaca. O mesmo ritual da desconfiança. Viraram o passaporte de cabeça para baixo, conferiram tudo, digitaram o computador, nada consta, mesmo assim não se conformaram, olharam agressivamente para o rosto negro, árido, meio escalavrado, do africano tenso, mandam sair da fila, chamam um chefe, sai. E a fila se arrastando medrosa.

Depois do passaporte, outro obstáculo: o controle de bagagens, bolsas, objetos pessoais e o próprio corpo. Vem a pequena passarela com detector de metais, que apita quando flagra. O árabe do turbante passou tranquilo. Não havia um ninho de metralhadora escondido ali dentro. O africano no camisolão ficou, vem o apito fino, estirado, estridente: -“piiii”. Todo mundo olha. É ela, a terrorista. E bem disfarçada. Alta, elegante, cara de italiana, chapéu vermelho de italiana, óculos italianos, botas italianas. Uma terrorista italiana. Logo aparecem três policiais femininas, levam-na ao lado, como se estivessem perguntando: – “Abra logo o jogo, e arma”? Não era. Apenas o isqueiro. Deixou o isqueiro, voltou, atravessou de novo a passarela metálica, sem apito nenhum. Se fosse um árabe ou africano, mesmo sem o segundo apito, a devassa ia continuar. O medo do terrorismo estava virando racismo.

Afinal, estávamos na sala de espera. Chamam nova fila. A metade passa, pedem para a outra metade esperar, porque vamos de ônibus para o avião. Pelo vidro, vimos o ônibus encher e seguir até o “air-bus” da Alitália, lá longe, no campo úmido, na manhã de 10 graus. O ônibus para, mas ninguém salta, ninguém entra. Os funcionários da Alitália, atenciosos e perplexos, comunicam que “houve um pequeno problema”, mandam-nos sair para esperar nova chamada. E os outros, dentro do ônibus, junto ao avião. Não havia dúvida. Era ela, a bomba. Estariam tentando desativar. E voltam os que haviam ido. O voo vai atrasar. Era para sair ao meio-dia, deu uma hora, duas horas, nada. Às 15 horas, afinal, embarcamos. Um leve, lindo, macio voo sobre o azulado mar adriático. A aeromoça, bela, com seus imensos óculos redondos, servia o vinho para o almoço já atrasado, quando o comandante pede atenção: -“Desculpem, mas a partir deste instante é proibido fumar. Apaguem seus cigarros e os mantenham apagados até que o sinal de proibição também se apague. É uma pequena emergência. Espero que dentro de 15 minutos já voltemos à normalidade.” Durou uma hora a proibição. Não havia realmente mais dúvida alguma. Era ela, a bomba. A bomba terrorista, afinal flagrada a bordo. Acender o cigarro era acender a bomba. E voar tudo pelos ares. Ela estava, certamente, descoberta e acuada pelos comissários, como uma onça enlouquecida. O murmúrio foi crescendo, ninguém sabia o que estava acontecendo, também não foi dito. E nada, absolutamente nada aconteceu. A aeromoça de óculos enormes atendeu a meu pedido, deixou comigo uma tranquilizadora garrafa de vinho tinto e logo comecei a ver as escarpadas colinas da Grécia lá embaixo, como o céu crespo do céu.

Para o brasileiro, Grécia é Sócrates, Platão, Aristóteles e Onassis. No máximo, a Jaqueline, viúva de Kennedy, viúva de Onassis. O teatro, o alfabeto, os oradores, a cultura, a civilização grega estão dentro de nós, desde a escola primária, qualquer que seja o nível educacional do brasileiro, como a nossa mais forte referencia cultural. Mas tudo coisa de séculos atrás. Dois para três mil anos. Grécia é o passado, a antiguidade, quase a eternidade. A língua, morta. A geografia, perdida ali entre o Mediterrâneo, os Balcãs, o fim do Ocidente, o começo do Oriente. Grécia é coisa distante. Grego, sinônimo de total desconhecimento: -“Isto para mim é grego.” E no entanto a Grécia está sempre junto de cada um de nós, em grande parte da língua que falamos, e, principalmente, na poderosa herança cultural, ela que foi a mãe da civilização latina, portanto avó de nossa civilização.